17 de maio de 2023

O desafio de descarbonizar a mobilidade

A indústria automobilística atravessa, no Brasil e no mundo, o mais rico período de transformação de sua história. Os conceitos fundamentais de mobilidade estão evoluindo e a motopropulsão está mudando de patamar tecnológico.

A indústria automobilística atravessa, no Brasil e no mundo, o mais rico período de transformação de sua história. Os conceitos fundamentais de mobilidade estão evoluindo e a motopropulsão está mudando de patamar tecnológico. Aparentemente, disputa-se uma corrida pela eletrificação veicular, mas, na realidade, o que está ocorrendo é um movimento mais profundo e transformador, cujo objetivo é a descarbonização da mobilidade. Este é, de fato, o desafio mais impactante para o futuro do nosso negócio.

A gênese deste movimento passa pelo Acordo de Paris, aprovado por 195 países na 21ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP21), com o objetivo central de fortalecer a resposta global à ameaça de mudanças do clima. Com o compromisso de manter o aumento da temperatura média global abaixo de 2°C em relação aos níveis pré-industriais, cada país desenhou sua estratégia para a limitação e redução das emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE), entre os quais o mais abundante é o dióxido de carbono (CO2).

Entre alguns países e blocos que mais emitem, como China, Estados Unidos, União Europeia e Índia, o fator crítico é a geração de energia, responsável por mais da metade da emissão de GEE, devido ao uso predominante de fontes de origem fóssil. Os transportes, incluindo movimentação de carga em todos os modais e passageiros, aparecem como terceira ou quarta fonte emissora.

Como outros setores estratégicos, a indústria automotiva trabalha para reduzir e mitigar a geração de CO2 e outros gases, empregando sua capacidade tecnológica e de organização para desenvolver e difundir novas formas de propulsão com menor pegada de carbono. Muitas soluções estão surgindo deste esforço. Mas quando observamos o caso europeu, vemos a ênfase e a urgência na eletrificação veicular, através de legislação restritiva à propulsão com base em combustíveis fósseis e adoção de incentivos à aquisição do carro elétrico, em um esforço de alto custo financeiro para a sociedade.

A realidade brasileira é muito diferente. A geração de energia e transportes praticamente se equivalem e, somados, são responsáveis por menos de 30% das emissões no Brasil. Os dados estão disponíveis em https://plataforma.seeg.eco.br/.  A matriz energética nacional tem forte participação de fontes renováveis, o que a torna muito mais sustentável do que a média global. A geração de energia elétrica por meios renováveis e a disponibilidade de biocombustíveis abrem para o país um leque de soluções de mobilidade em condições privilegiadas em comparação com outros países e blocos.

No tocante à propulsão da mobilidade, o etanol é um forte aliado na redução das emissões de CO2 e sua combinação com a eletrificação pode ser uma alternativa competitiva de transição para uma mobilidade de baixo carbono.  Os elétricos, embora sejam eficientes no processo de descarbonização, têm um custo muito elevado, que impede sua aquisição por amplas faixas de consumidores.  A solução 100% elétrica ainda não tem a escala necessária e precisa ser desenvolvida e aprimorada, para que possa tornar-se alternativa de massa em uma estratégia efetiva de descarbonização em países em desenvolvimento com características de renda como as do Brasil.

Por outro lado, o país tem mais de quatro décadas de acúmulo de tecnologia em etanol e conta com uma imensa plataforma produtiva, logística e de distribuição já implantada. Estamos celebrando os vinte anos de adoção da tecnologia flex fuel no Brasil e, nesse período, 40 milhões de veículos foram fabricados e comercializados com a tecnologia hoje presente em 83% da frota de veículos leves. A combinação do etanol com a eletrificação em propulsão híbrida, integrando motor a combustão e motor elétrico, é uma alternativa adequada de transição, pois permitirá o acesso de faixas maiores do mercado consumidor a tecnologias de baixa emissão.

Quando considerado no conceito well-to-wheel (do poço à roda), o etanol é altamente eficiente em emissões, porque a cana-de-açúcar em seu ciclo de desenvolvimento vegetal absorve de 70% a 80% do CO2 liberado na produção, distribuição e queima do etanol combustível.

Tivemos a oportunidade de testar e comprovar esta eficiência em simulação de dinâmica veicular, comparando fontes distintas de energia, a fim de mensurar a emissão total de CO2 em cada situação. O automóvel foi abastecido com etanol e comparado com a mesma situação de rodagem no caso de abastecimento com gasolina tipo C (E27) e também com veículo 100% elétrico (BEV) abastecido na matriz energética europeia. A comparação considerou não apenas a emissão de CO2 associada à propulsão do veículo durante o uso, mas uma série de variáveis que incluem as emissões correspondentes à produção do combustível ou geração da energia utilizada. A propulsão a etanol emitiu 18% menos CO2 do que um veículo elétrico abastecido com energia europeia, devido à sua geração baseada em fontes fósseis. Na comparação com gasolina, a redução das emissões é superior a 60%.

Está claro que a propulsão elétrica é a tendência dominante do setor automotivo mundial, mas sua implantação envolve um alto custo. O Brasil, devido à sua matriz energética, tem a oportunidade de fazer uma transição mais planejada e menos onerosa, aproveitando-se da gradual redução dos custos decorrente da massificação da tecnologia. Este bônus de tempo a favor do país pode ser utilizado para amadurecer um processo de reindustrialização de segmentos da cadeia produtiva nacional, altamente diversificado na produção dos itens mecânicos demandados pelos veículos a combustão. A eletrificação traz uma demanda totalmente nova de componentes, sobretudo de sistemas elétricos de propulsão e eletrônicos de controle, atualmente não produzidos no Brasil. A nacionalização desta tecnologia é um desafio e também uma oportunidade para a indústria nacional.

Não se trata, portanto, de contrapor descarbonização e eletrificação. A descarbonização é o resultado desejado e necessário da reinvenção da mobilidade já em curso, enquanto a eletrificação é um dos caminhos para se alcançar a descarbonização da propulsão. O emprego do etanol combinado com eletrificação é o caminho mais rápido e viável do ponto de vista social, econômico e ambiental para uma crescente eletrificação da frota brasileira.

Os artigos aqui apresentados não necessariamente refletem a opinião da Aberje e seu conteúdo é de exclusiva responsabilidade do autor.

Antonio Filosa

Antonio Filosa, presidente da Stellantis para a América do Sul

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