Vigiar e punir ou incentivar e recompensar? Os desafios da cultura de compliance
“Precisa estar na meta”, “precisa estar nos indicadores”, “precisa estar no bônus”. Nas discussões sobre desenvolvimento e transformação de cultura organizacional é quase imperativa a adoção de medidas de reconhecimento nas avaliações de desempenho ou indicadores chave de performance (KPIs). A contribuição desta prática como diretriz de comportamentos é comprovada em temas já muito observados, como qualidade, inovação, trabalho em equipe, foco no cliente, agilidade, entre outros. E quando falamos de ética, de integridade, de compliance? A experiência tem mostrado desafios nos significados que os reconhecimentos produzem na organização.
O 10º Congresso Internacional de Compliance trouxe em um dos seus painéis o tema “Bônus e ônus: sanções financeiras e recompensas dentro do programa de compliance”, com a participação de Salvador Dahan, Reynaldo Goto (BRF), Patrícia Godoy (Google) e Salim Saud Neto (Saud Advogados). A convite da Legal Ethics Compliance (LEC), realizadora do congresso, representei a Aberje no acompanhamento de algumas discussões que tocam o dia a dia dos profissionais de comunicação nos desafios para fomentar cultura e gerir reputações.
Esse painel trouxe os desafios de punir comportamentos indevidos e de reconhecer positivamente as condutas desejadas de integridade. Mas, por que é tão importante falar em indicadores para o desenvolvimento de cultura ética? Qual o significado compartilhado das punições no longo prazo? Devemos reconhecer com bônus as condutas éticas que deveriam ser a base dos comportamentos morais? Um líder de uma área sem denúncias deve ser reconhecido por isso?
Se você não pode mensurar, não conseguirá gerenciar, já nos dizia Peter Drucker. Além da gestão da eficácia e efetividade de áreas, os indicadores também são decisivos para influenciar as formas de tomada de decisão. Conhecemos em Geertz (1989) que a cultura é a “mediação entre o poder e o objetivo de sua ação”, uma força que direciona padrões de comportamentos. Ott (1989), de modo convergente, a definiu como uma “força social”. Essa força ou poder que direciona a cultura são as formas de agir que são reconhecidas pelas pessoas justamente porque contribuem para a entrega de resultados. As pessoas praticam porque funciona. E ensinam aos outros e aos novos membros para que também a adotem.
O que seriam esses resultados? A compreensão dos tipos de resultados mencionados nos importa para refletir o efeito das punições e recompensas em compliance para a cultura. Schein (2001) descreveu que um modo de comportamento é compartilhado e ensinado entre os membros se ele contribui para superar os desafios externos (para a organização cumprir sua missão), e também para os desafios internos (para a capacidade de adaptação dos membros ao modelo de trabalho). Taylor (2015), ao segmentar esses elementos sustentadores da cultura, nos mostra a importância dos sistemas de reconhecimento e dos símbolos que eles comunicam para a consolidação dos significados. Portanto, as pessoas se comportam a partir do que a organização, coletivamente comunica, ou deixa de comunicar, sobre o que é valorizado e o que não é tolerado, sobre o que permite que as pessoas permaneçam e se desenvolvam em uma organização.
Assim, se uma organização não atua por meio de medidas de correção sobre casos de desvios de conduta, o significado que fica para os membros é de que ela é complacente com os danos gerados. A pesquisa da Global Business Ethics Survey 2021, que investiga a percepção de funcionários sobre programas de compliance, demonstrou que na America Latina, 32% das pessoas sentem pressão para comportamentos antiéticos, 40% percebem desvios de conduta no ambiente de trabalho e 53% percebem retaliação após fazer denúncias. Ou seja, a cada ano essa pesquisa demonstra que as pessoas percebem dissonâncias e ambientes com baixo índice de justiça. Neste direcionamento, a expressão “tolerância zero” a transgressões se disseminou em programas de compliance para o cumprimento da coerência entre o discurso e a prática, para aplicação dos valores da organização, “doa a quem doer”, seja em processos ou em pessoas, mesmo que entreguem muito resultado no curto prazo.
Essa coerência entre discurso e prática ainda é um desafio para muitas organizações, por motivos que vão de desafios de investigação, tocam o baixo índice de denúncias, passam pelo ambiente de silêncio organizacional, sem deixar de considerar o estágio de maturidade do compliance na estrutura de Governança, entre outros. Na sondagem entre os participantes do painel no congresso, de 118 respondentes, 30% aplicam sanções financeiras atreladas a compliance. Em linha com essa convergência, foi citada como positiva a participação da área de compliance em reuniões de calibragem para avaliação de desempenho e reconhecimentos, para evitar o desalinhamento de promover algum envolvido em denúncia procedente. Contudo, foi unânime entre os painelistas: quando o compliance é apenas punitivo, desvinculado da estratégia organizacional, pode resultar em um ambiente de medo, de prejuízo à inovação e a produtividade.
Os incentivos positivos foram observados como um caminho necessário para que compliance possa ser visto como uma cultura de proteção do valor de longo prazo das organizações. A sondagem com os participantes do painel demonstrou que 15% das pessoas estão em organizações que reconhecem condutas adequadas. E é aí que as organizações têm enfrentado mais desafios relacionados aos significados das recompensas, tendo em vista a máxima de que o comportamento íntegro é premissa, não deve ser um diferencial.
As recompensas podem gerar desafios quando uma organização gera incentivo para o comportamento adequado e acaba por promover comportamento individualista, busca para obter vantagem. Os convidados do painel refletiram a necessidade da área de compliance participar da definição das metas de negócio da organização, para colaborar com a verificação de possíveis conflitos de interesse decorrentes de incentivos. Metas inatingíveis podem gerar um efeito individualista, um efeito “canibal”, se não considerar a forma como precisam ser alcançadas. Como exemplo, foi citada a complexidade da área de análise de riscos financeiros ser atrelada a resultados, como se fosse área de negócios, e o conflito de interesses entre o fiscalizar para proteger a organização ou para promover o resultado individual. Qual seria o impacto à cultura se isso acontecer?
Para responder a essa pergunta não precisamos nem recorrer à corrente ética deontológica de Kant, dos imperativos categóricos universais. Podemos nos apoiar na corrente ética utilitarista, que explica a conduta ética como aquela que produz o maior bem para o maior número de pessoas, na qual o interesse individual do tomador de decisão não deve entrar no cálculo de perdas e ganhos da decisão. Desta forma, se isso acontecer, voltaremos aos conflitos de interesse e ao ambiente de competitividade dissonante. Uma forma de pensar esse desafio pode ser o tipo do incentivo: financeiro, material ou simbólico? Certamente, troféus em acrílico, como usados por organizações do painel podem reduzir os conflitos, mas como assegurar a eles o valor simbólico do reconhecimento para impulsionar a cultura?
A área de comunicação está diretamente relacionada a um outro desafio: quando a organização reconhece uma pessoa por conduta íntegra, ela é enaltecida, divulgada nos canais de comunicação interna, cumprimentada publicamente pelo C-level, passa a ser vista pelas pessoas como exemplo, e pouco tempo depois surge denúncia ou ela se envolve em desvio de conduta grave. Que impacto à cultura se não bem gerenciado! Os questionamentos em casos como esses podem envolver: 1) insuficiência de indicadores – “qual critério faltou observar para conceder a recompensa?”; 2) ceticismo por parte dos funcionários mesmo que a organização adote medidas corretivas imediatas – “compliance não sabe avaliar as pessoas”; 3) a certeza da imperfeição moral – “podemos reconhecer as pessoas como éticas e íntegras, em sua totalidade?”.
A definição de metas e indicadores traz a problemática entre dar peso aos grandes riscos, aos entre 95 e 99% dos temas, e justamente o 1% não monitorado estar relacionado a uma transgressão que pode trazer danos a públicos e problemas para a companhia. Por outro lado, é possível (ou efetivo) monitorar muitos indicadores?
Ao longo dos anos em que diversos profissionais de compliance em nosso país têm se dedicado a fomentar a cultura de integridade, foram construídos alguns aprendizados importantes. Um caminho discutido no painel é o reconhecimento por iniciativas, por projetos. O cuidado necessário com o risco de reconhecer as pessoas integralmente. As pesquisas de economia comportamental e comportamento moral, como as de Dan Ariely, colaboram com a compreensão de que a maioria das pessoas pode ter um fator de desonestidade, dependendo do tema em nossa vida. Embora tenhamos essa dualidade entre como percebemos nosso caráter e como de fato nos comportamos, não separamos o nosso julgamento. Quando a organização reconhece alguém que não compreendemos como legítimo, o sentimento e a narrativa informal tratarão de atribuir os significados.
Desta forma, os indicadores são e continuarão a ser, em ambientes organizacionais, guias para compreender e convergir a forma como as pessoas tomam decisões nas organizações. Cultura é base material organizacional, atrelada a resultado. As pessoas não praticam uma cultura porque solicitam, mas porque, ao aplicar, missões individuais e coletivas são cumpridas. Esse painel vem atualizar a máxima de que o exercício da crítica no campo da cultura de compliance se faz necessária, continuamente. A comunicação, como espaço de construção de sentidos (Baldissera, 2009) em uma sociedade marcada por tantos desafios concretos de comportamento e integridade, não pode correr o risco de disputá-los com significados dissonantes e incoerências da cultura organizacional.
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