28 de janeiro de 2021

Tudo que é sólido desmanchou no digital

Publicado originalmente na edição de dezembro da Revista Problemas Brasileiros

Gosto de escrever meus textos à mão, com uma velha caneta Parker, presente de meu pai no final dos anos 1950. Existia, em muitas das famílias brasileiras de classe média, esse ritual de premiar os filhos recém alfabetizados com uma caneta tinteiro. Sinto ainda as pontas de meus dedos direitos doloridos, às vezes encharcados de tinta e de suor pela tensão de pressionar o papel e ir inscrevendo, desenhando, cada letrinha. Havia ali naquele aprendizado milenar, sem que eu soubesse, algo de escriba de letra cuneiforme, um tempo guardado entre a ideia e a expressão. Havia silêncio, concentração e beleza. Nada, como acontece atualmente, disputava a atenção de uma criança descobrindo o poder de escrever, ler e se expressar.

Sinto não ter a memória do instante mágico de minha primeira leitura e compreensão. Anos depois, no ambiente do final dos anos 1960, ganhei a minha primeira máquina de escrever, uma Olivetti, uma Lettera 22, portátil. Havia ainda naquela escritura maquinal elementos rituais, tais como a sala silenciosa e o tempo reservado, onde se escrevia. Existia também os objetos de culto operados pelo escritor, como a fita de tinta, o papel carbono, o papel sulfite e o cesto de lixo para eram descartados poemas, contos e outros textos renegados. Por que na Pandemia do Covid-19 lembro miticamente de tudo isso?

Talvez, porque as principais coisas que nos foram retiradas, além de milhares de vidas e suas histórias, sejam os rituais abrangentes de comunicação e relacionamento, aqueles rituais bem marcados pelo ambiente da casa, da rua, do trabalho, da igreja, da escola, do entretenimento e do amor. Rituais, tão enraizados, que nascemos e  crescemos dentro deles. Esses rituais expressos como acontecimentos, como formas sociais de viver e conviver que existiam antes do nosso nascimento. No final do século XIX, Durkheim chamou isso de fato social. A pandemia do Covid-19 destruiu radicalmente esses territórios rituais com os quais tínhamos relações afetivas. Em pouco tempo territórios feitos de terra, de água, de ar e de fogo desapareceram. Qual o sentido e o significado de milhões de pessoas e suas histórias, famílias,  empresas  e empregos terem desaparecidos? Quantos vínculos foram desamarrados?

Comunicação expandida e olhar humanizado

A pandemia intensificou a mediação feita pela digitalização da comunicação. As relações humanas e a comunicação de empresas e instituições ficaram dependentes das telas de computadores e smartphones. Em tempo de distanciamento social forçado, foi nos tirados inúmeros contextos e a representação digital se transformou em um ingrediente único em nossas formas de conviver, de aprender, de comer, de andar, de amar, de entreter, de votar, de nascer, de enlutar, de cantar, de olhar, de abrigar, de comprar, de julgar, de rezar, de trabalhar. Nunca se fez tanto de forma remota e com uma abrangência nunca vista e testada.

Nos ambientes institucionais brasileiros ajustados com os princípios contemporâneos de gestão ambiental, social e econômica,  o vírus trouxe um questionamento quase imediato e uma transformação não planejada, a ser estudada e avaliada, das formas de relacionamento e comunicação do patrão, do professor, do pastor, do padre, do pai-de-santo, do político, dos pais – desses “pês” que representam os poderes e os controles tradicionais sobre os indivíduos, comunidades, eleitores, consumidores e empregados. De um dia de março para outro dia de março de 2020, um olhar mais antropológico, mais leve e sofisticado sobre as maneiras como vivemos e nos relacionamos (inclusive com a natureza) se impôs para todos os que habitam de forma responsável este mundo.

No Decameron, escrito por Giovanni Boccaccio, logo após a peste negra de 1348, que devastou a Europa, 10 jovens atravessam o período da epidemia em uma vila senhoril, afastada de Florença, ouvindo a narração de histórias, que os fizeram esquecer a morte que devastava e desorganizava a vida cotidiana.  Do ventre da peste, iniciada em 2020, eu espero que tenham nascido boas histórias, muitas escritas ou filmadas nas telas dos smartphones, que, mais do trazer outras perspectivas sobre a vida e a morte, tenham contribuído para desacelerar o tempo e reencantar o mundo, tal como acontecia quando ganhei a minha primeira caneta.

Os artigos aqui apresentados não necessariamente refletem a opinião da Aberje e seu conteúdo é de exclusiva responsabilidade do autor.

Paulo Nassar

Diretor-presidente da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje); professor titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP); doutor e mestre pela ECA-USP. É coordenador do Grupo de Estudos de Novas Narrativas (GENN), da ECA-USP; pesquisador orientador de mestrado e doutorado (PPGCOM ECA-USP); pesquisador da British Academy (University of Liverpool) – 2016-2017. Entre outras premiações, recebeu o Atlas Award, concedido pela Public Relations Society of America (PRSA, Estados Unidos), por contribuições às práticas de relações públicas, e o prêmio Comunicador do Ano (Trajetória de Vida), concedido pela FundaCom (Espanha). É coautor dos livros: Communicating Causes: Strategic Public Relations for the Non-profit Sector (Routledge, Reino Unido, 2018); The Handbook of Financial Communication and Investor Relation (Wiley-Blackwell, Nova Jersey, 2018); O que É Comunicação Empresarial (Brasiliense, 1995); e Narrativas Mediáticas e Comunicação – Construção da Memória como Processo de Identidade Organizacional (Coimbra University Press, Portugal, 2018).

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