Propaganda perde poder
‘O inferno são os outros.’ A frase de Sartre, em seu texto para teatro Entre quatro paredes, de 1944, em que três personagens – Garcin, um covarde que quis ser herói em vida; Estelle, uma mulher que usou o casamento para subir na vida; e Inês, uma sádica que gozava com o sofrimento dos outros – são condenados a rever suas histórias, suas imagens sem espelhos, por meio dos olhos dos outros, que são desconhecidos, indesejados avaliadores da imagem alheia e, por isso, um inferno. O assunto é foco de interesse para quem trabalha com comunicação empresarial ou assemelhada. Afinal, o inferno de Sartre desmonta eternamente imagens autocentradas, poderosas, que convivem à força com outras opiniões, com outras visões, sem maquiagem. Longe do conceito cristão, o inferno sartreano está mais próximo do divã de Freud e das organizações e redes sociais de hoje, que expõem sem delicadeza e permissão a identidade que governos, empresas e autoridades não gostariam que fosse revelada.
Hoje, o inferno sartreano expandido abarcaria governos como o de Israel, dirigido por uma extrema-direita fundamentalista; instituições, como a Igreja Católica; e empresas, como a britânica British Petroleum (BP), para os quais ‘o inferno são os outros’, que produzem a imagem de suas histórias e a fazem circular nas imensas e incontroláveis redes sociais.
Os turcos eram filhos do demônio
Até então, Israel utilizou uma formidável estrutura de relações públicas e propaganda para justificar suas ações guerreiras, a pretexto de sua sobrevivência como nação cercada por inimigos; os dirigentes católicos controlaram a própria imagem, na sua história milenar, por meio da monitoração feroz de veículos de comunicação e qualquer opinião divergente; a British Petroleum (BP) é apenas um caso entre milhares de empresas poderosas que, por meio de sua comunicação empresarial, vendem uma identidade de engajamento a causas, como o respeito ao meio ambiente.
A identidade empresarial fabricada em laboratório normalmente contrapõe-se à opinião que a sociedade tem do cotidiano de uma empresa. Bom exemplo é o desenrolar do desastre ambiental do petróleo no Golfo do México, acompanhado on-line por milhões de pessoas no mundo.
Todo tipo de fundamentalismo, cristão ou muçulmano, usa estruturas retóricas de demonização e desqualificação daquilo que é diferente. Peter Lamborn Wilson mostra, em seu livro Utopias piratas: mouros, hereges e renegados (Editora Conrad, 2001), que nos séculos 16, 17 e 18, nas línguas européias, ‘turco’ denominava qualquer muçulmano, ‘inclusive os mouros do Norte da África’. Na literatura e no imaginário da época, os turcos eram filhos do demônio, os soldados cruéis. Wilson é um erudito e critica a imagem absoluta da história, fabricada pelo poder e pela ignorância, que penaliza sempre quem não pode expressar suas idéias, geralmente os pobres.
Entender o sentido dos outros
Em São Paulo, ou em outras cidades globais, convivemos diariamente, sentamos à mesa, temos amigos de todos os cantos do mundo. Para nós, brasileiros, mestiços, a demonização elaborada pela mídia preconceituosa e por instituições antidemocráticas é incompreensível e inaceitável.
E o que se vê, cada vez mais, são imagens capturadas a partir de câmeras amadoras e telefones celulares, publicadas imediatamente nas redes digitais mantidas por organizações sociais de todo o tipo, contrapondo-se a rótulos totalizantes. Por exemplo, as primeiras imagens do ataque do exército israelense aos barcos que se dirigiam a Gaza, na última segunda-feira (31/5), foram divulgadas pelos ativistas embarcados. Ou seja, horas depois, as imagens veiculadas pelo exército de Israel não eram a única versão daquele fato.
Significa dizer que a propaganda de qualquer Estado está perdendo o poder de impor suas verdades. Uma nova realidade mostra que é preciso entender, como na peça de Sartre, o sentido dos outros, o momento em que as alteridades entram na composição da construção da imagem e a afirmação da identidade deve levar em conta os interesses de quem nos observa.
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