O fascismo e a cultura do cancelamento
*Publicado originalmente no LinkedIn, no dia 10 de março de 2022
O historiador e filósofo Yuval Harari, em 21 lições para o século 21, faz uma reflexão sobre a crise da democracia liberal e alerta para a importância de nunca subestimarmos a estupidez humana. Estamos diante de um cenário inundado por conteúdos irrelevantes, por desinformação e distrações, onde clareza é poder. Presenciamos todo o tempo ações de cancelamento e agora uma guerra que traz o tema do fascismo para o centro das atenções. Cada vez mais parece ser importante entender este contexto, sem banalizações.
O conceito tradicional de fascismo remete a uma ideologia política ultranacionalista e autoritária caracterizada por poder ditatorial, repressão da oposição por via da força e ampla arregimentação da sociedade e da economia. Trata-se de um conceito desenvolvido na Itália, no início da década de 1920, e que acabou servindo de modelo para regimes políticos de viés totalitário mundo afora.
O filósofo Gilles Deleuze, em parceria com o psicanalista Félix Guattari, em duas obras épicas, O Anti-Édipo e Mil Platôs, trouxe um olhar contemporâneo e transversal para a discussão do tema. “O fascismo implica em um regime molecular. É muito fácil ser antifascista no nível molar, sem ver o fascista que nós mesmos somos, que entretemos e nutrimos, que estimamos em moléculas pessoais e coletivas”.
Para entender a multiplicidade dos eventos na sociedade contemporânea, Deleuze criou o conceito de rizoma, do pensamento rizomático que se espalha em todas as direções, que escapa o tempo todo, criando e desfazendo alianças.
Visionário, ele antecipou o surgimento das redes sociais, mostrando como a sociedade moderna, vista por Foucault como “disciplinar”, dá lugar a uma contemporaneidade onde a estratégia social fundamental é a de esvaziar a imagem da sua virtualidade, para a tornar pura informação, deslocando a abordagem do campo da representação, para compreendê-la como a própria expressão dos acontecimentos. Nas redes, as imagens que nos chegam parecem não mais se interessar pelo acontecimento, mas apenas em reafirmar o seu olhar omnipresente, sob o qual tudo se passa e nada passa despercebido.
Na sociedade contemporânea, o “penso, logo existo”, dá lugar ao “sou visto, logo existo”. Do Big Brother à crônica da vida cotidiana, relatada passo a passo nas redes sociais, cultivamos o voyeurismo e o exibicionismo. A privacidade se transforma em espetáculo.
As redes sociais mudaram o paradigma da comunicação, criando um campo total de transparência onde todas as vozes podem ser ouvidas. Isso permitiu o surgimento de um universo de novas possibilidades, mas, ao mesmo tempo, abriu uma caixa de Pandora, dando espaço para o exibicionismo, para narrativas fantasiosas, a naturalização da violência, a polarização ideológica e a intolerância. Acendeu também microfascismos em nós, liberando atitudes que podem assumir um viés no qual o outro, como diferença, é visto como ameaça e, assim, evitado, ou destruído pela versão contemporânea do “paredón” cubano, onde adversários eram fuzilados após julgamento sumário.
Sim, estou falando da cultura do cancelamento, como subproduto da ilusão de transparência total que fomenta o exibicionismo nas redes.
Nós crescemos ouvindo que “Errar é humano”. A origem da frase remonta ao século 17, na autoria do poeta londrino Alexander Pope, que escreveu “Errar é humano; perdoar, divino”. Na simplificação, o perdão assume a condição de uma consequência natural, algo inerente à humanidade. Pois os erros cometidos, nos limites da universalidade dos valores humanos, seriam toleráveis.
Mas nas redes, diria Deleuze, as imagens são esvaziadas de sua virtualidade e se tornam pura informação. E nós ignoramos os acontecimentos e imediatamente enxergamos o outro como ameaça, subtraindo dele o direito de errar. O microfascismo em nós é a expressão da intolerância, que elimina a possibilidade do perdão. Afinal, quem não concorda está errado. Pior, condenado. Porque aqui desaparece o espaço do contraditório. “Paredón!”
Em tempos difíceis como os que vivemos, é preciso exercitar o paradigma Deleuziano e fomentar uma nova maneira de pensar e viver, contrária a todas as formas de fascismo. Como queria Michel Foucault quando vaticinou que este século seria Deleuziano. É preciso relembrar o óbvio, de que a vida merece ser vivida e que o pensamento é como uma arma, um pincel, uma guitarra distorcida, um poema.
É urgente construir uma Ética capaz de afirmar a si mesma e ao outro através dos bons encontros. Respeitar as diferenças, permitir ao outro se expressar, defender a vida. Não a vida impotente, subjugada, deprimida, incapaz, explorada. Nas palavras de Foucault: “a arte de viver contrária a todas as formas de fascismo”.
Está na hora de lutar contra a intolerância, a estupidez. Vamos cultivar novas maneiras de sentir, pensar, de agir. E procurar aliados nesta empreitada, carregando a bússola de Foucault: “O banimento de todas as formas de fascismo, desde aquelas, colossais, que nos envolvem e nos esmagam, até as formas miúdas que fazem a amarga tirania de nossas vidas cotidianas.”
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