Menos achismos e mais evidências: precisamos entender os métodos científicos para uma comunicação mais assertiva (parte 2)
Confira a parte 1 do artigo aqui
De forma introdutória, a primeira parte desta coluna teve como intenção deixar bem claro que não há atalhos, ou fórmulas mágicas, para nos tornarmos um profissional que toma decisões baseado em evidências. Para sustentarmos melhor nossas intuições, é necessário, inevitavelmente, compreender como funciona o processo de construção de conhecimento. Aqui a gente quer sair um pouco das obviedades corporativas de postagens do LinkedIn e aprofundar em um debate mais complexo. Para isso, vamos tangenciar a discussão sobre o que é ciência. Trata-se de uma das questões filosóficas mais importantes do séc. XX e está presente diariamente nas nossas ações cotidianas, mas não nos damos conta.
Não quero ocupar muito seu tempo. Então, vamos seguir o trilho da tradição de Kant e do empirista David Hume (1771-1776) e pular direto para a compreensão do impacto de Karl Popper na definição da visão dominante hoje em dia do que se entende por método científico. Em 1934, o filósofo publicou o livro A Lógica da Pesquisa Científica – que foi fundamental para destravar problemáticas da teoria do conhecimento que estavam abertas e influenciar no desenvolvimento da ciência no século XX. Esta publicação é resultado de uma série de esboços e trabalhos produzidos entre 1930 e 1933 (POPPER, 2013), que foram publicados posteriormente, em 1979, no livro Os dois problemas fundamentais para a teoria do conhecimento.
Popper: os problemas fundamentais para a teoria do conhecimento
Como está explícito no título deste último livro, Popper avança sobre duas questões fundamentais para definir o processo científico: o problema da indução e o critério de demarcação do que é ciência. Agora, entramos em conceitos fundamentais e complexos. Antes de continuarmos, de forma bem simplificada, a Indução e Dedução são dois métodos para a construção de conhecimento. Associado ao pensamento racionalista, a dedução é um processo de raciocínio lógico que parte de um certeza para a interpretação de dados ou fatos (da causa para os efeitos). Ligadas aos empiristas, a indução parte de dados ou evidências semelhantes para a definição de uma certeza comum (dos efeitos para as causas).
Em resumo, a indução é um problema lógico que norteia o saber científico por partir de informações singulares (dados empíricos, observáveis) para chegar ao conhecimento universal. Ou seja, um cientista observar uma série de fenômenos, transforma-os em hipótese que, se verificadas, podem se transformar em um consenso científico.
Influenciado pela “organização” do mundo físico imposto pelas teorias de Issac Newton (COMPARATO, 2016), Kant é quem joga luz para a formulação deste conceito do indutivismo. Porém, Hume demonstra para Kant que há uma limitação metodológica para chegar neste conhecimento universal. Para se ter uma certeza a partir do empirismo, o experimentador teria de ter acesso a todos os indivíduos de seu objeto de estudo e isso seria, e ainda é, impossível. Por exemplo, para saber qual é o time de futebol mais querido pelos brasileiros, teríamos de perguntar a toda a população.
Aqui, o leitor atento já percebeu que temos uma questão resolvida hoje pelas técnicas de estatística, mas Francis Galton (1822-1911) só descreveria a regressão à média no final do século XIX. É exatamente esta revolução da estatística no início do século XX que permite a Popper propor uma solução para a problemática de Hume para indução. Popper afirma (p. 11, 2013 a) que “a questão acerca da validade de enunciados factuais universais pode ser provisoriamente respondida dizendo que fatos universais não são verificáveis, mas apenas falsificáveis.” Basicamente, a metodologia científica tem de consistir na tentativa de falsificação da hipótese e não na sua validação.
Para quem tem familiaridade com estatística, este é o princípio do Teste de Hipóteses. O cientista busca rejeitar (falsear) o enunciado (hipótese nula). No exemplo mais clássico dado por Popper, a hipótese é de que “todos os cisnes são brancos” será falsiada no momento ao se observar que, em alguma amostra destes pássaros, há um negro. Para Popper (p. 29, 2013 a), a “inferência indutiva, embora não ‘estritamente válida’, pode atingir um grau de ‘confiabilidade’ ou probabilidade.”
Ou seja, é importante termos consciência de que o nosso conhecimento sempre será restrito a um nível de certeza, mas nunca teremos certeza absoluta de algo. Aqui, entra o segundo problema da teoria do conhecimento que é a demarcação – ou qual tipo de conhecimento pode ser considerado científico ou não-científico. Para Popper, só pode ser considerado ciência apenas proposições que possam ser empiricamente refutadas. Temos de ter alguma aplicação metodológica que permita falsear o enunciado.
Portanto, se o conhecimento parte de uma verdade considerada incontestável por quem o enuncia, não é considerado científico. O exemplo mais claro é a existência de Deus – que não pode ser empiricamente provada. Este tipo de formulação é chamada de método dedutivo. É importante sublinhar que a dedução é um excelente método de se construir conhecimento, como a matemática e a filosofia, por exemplo.
Construção do conhecimento pela dialética e o estudo da sociedade
O pensamento de Popper tem maior aderência nas chamadas ciências naturais, que estudam a natureza nos seus aspectos físicos, químicos e biológicos, do que as humanísticas e sociais. Apenas alguns livros didáticos de metodologia de ciências sociais incluem o empirismo de Popper. (CIBANGU, 2012). O livro Metodologia Científica em Ciências Sociais, de Pedro Demo, é um deles e traz Popper quando trata das questões empirismo e positivismo.
Porém, Demo (p. 88, 1995) afirma categoricamente que considera a dialética como o método mais conveniente para compreender a realidade social. Aqui, entramos em outra tradição fundamental na construção de conhecimento: o pensamento dialético. Esta forma de pensar é proposta por Friedrich Hegel (1770-1830) como crítica à metafísica de Kant. Hegel influenciou uma geração de pensadores, principalmente os estudantes da Universidade de Berlim no século XIX. Entre eles, estava Karl Marx (1818-1883), muito conhecido – e demonizado – pela opinião pública por ter influenciado as revoluções socialistas no início do século XX. Porém, é pouco lembrado, fora da universidade, por sua contribuição teórico metodológica (materialismo histórico dialético) nas ciências sociais.
Ao lado de Marx, com diferentes formações teóricas, temos outros dois pensadores fundamentais na construção de metodologia para estudos de sociedade. Mais influente para os pensadores brasileiros, o francês Émile Durkheim (1858-1917) tem a preocupação de tornar as ciências sociais como ‘ciência legítima’, trazendo a utilização do método hipotético-dedutivo em suas proposições. Já o alemão Max Weber (1864-1920) realizou investigações históricas sobre os sistemas religiosos e estudos empíricos sobre as organizações sociais contemporâneas (BECKER, 1993).
Parece que não, mas estas questões filosóficas estão presentes no seu dia a dia. Se você se formou em algum curso de ciências sociais aplicadas, como relações públicas, jornalismo ou publicidade, existe uma grande possibilidade de ter uma visão epistemológica de tradição dialética. E isso explica muito bem aqueles embates mais fervorosos com seus amigos, parentes e, principalmente, seu chefe, que, formados em engenharia (física aplicada) ou medicina (biologia aplicada), tendem achar que existe para a sociedade enunciados factuais universais, como na física ou na biologia.
Enfim, para sairmos da intuição para sustentarmos nossas decisões em evidências, é necessário compreendermos como o conhecimento é formado. Nesta segunda parte da coluna, tentamos dar uma visão da filosofia para esta questão. Na parte final deste ensaio, vamos entrar no outro ponto fundamental para a construção de pensamento científico: a estatística. Mas calma, vai ser uma abordagem mais interessante do que a que você teve nas aulas da faculdade.
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