04 de julho de 2024

Memórias e História Empresarial: entre o efêmero e o perene

*Palestra proferida no evento 1º Encontro Diálogos sobre Patrimônio Cultural, em comemoração aos 30 anos do Centro de Memória AngloGold Ashanti.

É com imensa honra que participo das comemorações dos 30 anos do Centro de Memória Anglogold Ashanti, no contexto do 1º Encontro Diálogos sobre Patrimônio Cultural. Gostaria de expressar meu profundo agradecimento ao Othon de Villefort Maia, vice-presidente de Sustentabilidade e Assuntos Corporativos, ex-diretor do Capítulo Aberje Minas e hoje membro do Conselho Deliberativo da Aberje pelo convite. Agradecimento extensivo à sua Equipe.

Este evento não só celebra três décadas de dedicação à preservação e valorização da história da empresa, mas também nos oferece uma oportunidade única para refletir sobre a importância da memória, da história e do patrimônio cultural em nossas vidas. Em um mundo onde a memória e a identidade são frequentemente ameaçadas pela efemeridade e pela rápida evolução tecnológica, espaços como o Centro de Memória se destacam como verdadeiros guardiões da nossa herança coletiva.


Memórias e História Empresarial: entre o efêmero e o perene

Os lugares de memória são territórios extraordinários que transcendem a mera exibição de produtos e conquistas corporativas. Eles são guardiões da história, da cultura e dos valores de uma empresa, preservando seu legado e inspirando futuras gerações. Em um mundo onde o efêmero, a banalização e a naturalização dos olhares, a produção e a circulação torrencial de informações – que tem no smartphone o seu totem – ameaçam a relevância de muitos aspectos da sociedade, os centros de memória e museus empresariais, como lugares rituais, podem se destacar como defensores do que é verdadeiramente significativo.

Esses espaços não apenas documentam a trajetória de uma empresa, mas também servem como centros de aprendizado e inspiração. Ao entrar em um museu empresarial, os visitantes são convidados a explorar a evolução, as inovações e as contribuições da empresa para a sociedade. Eles aprendem sobre o nível mais profundo da cultura de uma empresa: os seus valores, a missão e a visão que guiaram a organização ao longo dos anos e podem se inspirar nas histórias de perseverança e criatividade que encontram.

Uma reflexão da personagem Alina no romance “Casa Rossa” da escritora italiana Francesca Marciano oferece uma perspectiva tocante sobre a importância da preservação da memória. Alina questiona: “O que acontece com sapatos, meias, roupa íntima, creme de barbear, blocos de notas, lápis, lenços dos mortos? Que mãos decidem o que jogar no lixo e o que enfiar em um envelope e guardar numa gaveta? Que tipo de coração é preciso para se livrar dessas coisas sem remorso, como se fossem latas de cerveja vazias?” Essa reflexão é um lembrete pungente de que cada objeto possui uma história e um valor sentimental, algo que os museus empresariais, como um dispositivo cultural, compreendem e operam profundamente.

Nos museus empresariais, cada artefato, documento e produto preservado carrega consigo um pedaço do self, da alma da empresa. Esses objetos não são meros itens descartáveis, mas sim testemunhas silenciosas de momentos significativos, inovações transformadoras e a dedicação de inúmeras pessoas. O cuidado e a consideração com que esses itens são selecionados e exibidos refletem o compromisso da empresa em honrar seu passado e compartilhar sua jornada com o mundo.

Além de educar e inspirar, os museus empresariais contemporâneos procuram promover a diversidade e a inclusão, destacando as contribuições de diferentes culturas e grupos dentro do contexto corporativo. Eles servem como pontos de encontro para funcionários, clientes e comunidades, fortalecendo a identidade e a cultura corporativa, e também o propósito de, cada vez mais, afirmar a empresa como uma extensão da sociedade. Através de exposições interativas e eventos comunitários, esses museus tornam-se locais onde diferentes vozes são ouvidas e valorizadas.

Os museus empresariais também, em sua maioria, desempenham um papel crucial na conservação de inovações e documentos históricos, conduzindo pesquisas que enriquecem o conhecimento em várias disciplinas. Eles oferecem experiências únicas que capturam a essência da marca, promovendo o engajamento e a lealdade dos clientes, dos empregados, das comunidades e da sociedade. 

Os museus empresariais são muito mais do que espaços de exibição. Eles são guardiões de memórias e inspirações, defensores da relevância e significado em um mundo em constante mudança. Assim como Alina questiona, no romance Casa Rossa, o destino dos pequenos objetos que compõem a vida de uma pessoa, os museus empresariais nos lembram da importância de preservar e valorizar cada peça da história de uma empresa, reconhecendo que cada detalhe, por menor que seja, contribui para a grande narrativa de sua existência.

Os argumentos até aqui apresentados por mim destacam a responsabilidade dos gestores, principalmente do C-Level e da alta gerencia, em entender a importância desse dispositivo cultural que é o centro de memória ou museu empresarial e o papel da memória e da história empresarial, na construção da narrativa histórica de uma empresa. A seleção dos objetos para essa narrativa histórica reforça o entendimento dos modos como a empresa se relacionou com o universo social e natural. A seleção do que é relevante, além da escolha dos objetos, pode mostrar a inserção da empresa e de seus representantes na vida cotidiana, em seus aspectos simbólicos e materiais. Entre muitos aspectos que levam essas escolhas, a gestão deve entender que a seleção do que deve ser apresentado no museu ou centro de memória está cada vez mais sobre o escrutínio de outros públicos, que convivem com a empresa: empregados, comunidades, fornecedores, autoridades, imprensa, universidade, dentre outros. Esses públicos sempre perguntarão sobre o que ficou fora, sobre o que foi descartado dos lugares de memória das empresas. E, também, esses públicos perguntarão sobre as razões das escolhas e dos descartes.

Novas Narrativas e as mudanças organizacionais

Hoje, radicalmente, todos têm memórias e histórias sobre a organização. Memórias e histórias evocadas e criadas a partir de momentos de reestruturações produtivas, onde a tradição é tensionada pela inovação; a partir de momentos de reestruturação patrimoniais ( fusões, cisões e aquisições), onde os controladores são trocados, as referências tradicionais e a cultura organizacional são enfraquecidas ou fortalecidas. Memórias e histórias criadas em um contexto em que a organização não têm controle sobre o quê será narrado, principalmente aqueles em que a empresa é protagonista em crises e controvérsias com a opinião pública. 

Sobre a abrangência dos relatos históricos empresariais, lembremos aqui a perspectiva aberta pelo que se denominou como a Nova História. Peter Burke (1992) explica a Nova História como uma corrente que incorpora novos temas, novos protagonistas, novos ângulos e, principalmente, novas formas de escrever a história. Entre esses novos temas estão, como exemplos, as mulheres, os empregados, as profissões, o velar e o luto. Temas relatados em sua forma oral e por meio de um narrar que contempla também a subjetividade, a psiquê, dos sujeitos da organização e de seus relacionamentos. 

É inevitável nos perguntarmos por que a narrativa história é importante. Uma resposta aponta para a busca da legitimidade organizacional e para a necessidade de buscar, manter, defender, aumentar a licença social para operar. 

Legitimidade e Licença Social para operar são conquistadas por uma trajetória histórica da empresa que demonstre com vigor a utilidade, a compatibilidade e a transcendência das ações organizacionais, no longo prazo de sua história. O olhar da história é cuidadoso, voltado para cada minuto trilhado ao longo dos anos. É o olhar certificador que confere a honraria da Responsabilidade histórica. Responsabilidade histórica que é formada pela convergência de outras responsabilidades importantes: a responsabilidade social, a responsabilidade ambiental; a responsabilidade cultural e a responsabilidade comercial.

A empresa como empreendimento social

Assim como crianças, homens e mulheres, as empresas também têm suas jornadas cheias de momentos e emoções variadas. Ao longo dessa palestra, refletimos sobre a importância de capturar a essência dessas organizações em toda a sua plenitude. É fundamental que narrativas empresariais incluam não apenas os sucessos e as conquistas, mas também os desafios e as vulnerabilidades que moldam sua trajetória.

Lembremos que a primeira foto e o primeiro relato sobre uma criança são, muitas vezes, um berro – um símbolo de vida, de início. Da mesma forma, as empresas também começam com um grito de esperança e determinação. A alegria e a tristeza, a força e a fragilidade, todas essas emoções e experiências constituem os alicerces sobre os quais se constroem suas histórias.

E como o dramaturgo e poeta alemão, Bertold Brecht, nos lembra em seu poema Perguntas de um Operário que Lê, acerca da construção de Tebas, da Muralha da China e outras obras monumentais da humanidade, não foram apenas os grandes arquitetos e engenheiros que tornaram essa obras possíveis, mas também os cozinheiros e outros trabalhadores que desempenharam papéis essenciais em sua elevação e conclusão. Da mesma forma, em uma empresa, cada pessoa, independente de seu cargo, contribui de maneira vital para o sucesso e a realização dos objetivos comuns.

Portanto, ao contarmos a história de uma empresa, devemos ser fiéis à realidade de suas jornadas, reconhecendo que cada alto e baixo, cada sorriso e lágrima, são partes integrantes de sua memória. É isso que torna suas narrativas autênticas e inspiradoras. Ao celebrarmos a diversidade dessas experiências e reconhecermos o valor de cada indivíduo envolvido, honramos não apenas as empresas, mas também as pessoas que as fazem viver e crescer.

Que possamos, então, continuar a escrever e a compartilhar essas histórias com integridade e paixão, contribuindo para um legado de memórias ricas e completas.

Os artigos aqui apresentados não necessariamente refletem a opinião da Aberje e seu conteúdo é de exclusiva responsabilidade do autor.

Paulo Nassar

Diretor-presidente da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje); professor titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP); doutor e mestre pela ECA-USP. É coordenador do Grupo de Estudos de Novas Narrativas (GENN), da ECA-USP; pesquisador orientador de mestrado e doutorado (PPGCOM ECA-USP); pesquisador da British Academy (University of Liverpool) – 2016-2017. Entre outras premiações, recebeu o Atlas Award, concedido pela Public Relations Society of America (PRSA, Estados Unidos), por contribuições às práticas de relações públicas, e o prêmio Comunicador do Ano (Trajetória de Vida), concedido pela FundaCom (Espanha). É coautor dos livros: Communicating Causes: Strategic Public Relations for the Non-profit Sector (Routledge, Reino Unido, 2018); The Handbook of Financial Communication and Investor Relation (Wiley-Blackwell, Nova Jersey, 2018); O que É Comunicação Empresarial (Brasiliense, 1995); e Narrativas Mediáticas e Comunicação – Construção da Memória como Processo de Identidade Organizacional (Coimbra University Press, Portugal, 2018).

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