COlabora #11 – O lugar onde tudo acontece
*Publicado originalmente no LinkedIn em 01 de fevereiro de 2022
Embora não seja nova, a ideia do capitalismo de stakeholder ganhou destaque no debate corporativo a partir de 2019, quando os CEOs de quase 200 grandes empresas norte-americanas assinaram um manifesto defendendo que a supremacia do lucro deveria ceder espaço para uma visão centrada nos diversos públicos com os quais as empresas interagem. De lá para cá, na mesma velocidade em que investidores/credores ampliam a alocação de recursos financeiros em empresas que se preocupam com os fatores/critérios ESG na tomada de decisões, o debate se aprofunda, e cada vez mais aspectos são trazidos ao centro do palco. Um dos mais urgentes e importantes talvez seja traduzir na prática como alinhar as decisões corporativas de criação de valor financeiro à sustentabilidade econômica da empresa com a promoção da dignidade às pessoas e a preservação do meio ambiente, trazendo valor reputacional e perenidade financeira aos negócios.
Na edição de 2022 de sua sempre aguardada carta anual aos CEOs, Larry Fink, CEO da Black Rock, maior gestora de investimentos do mundo, com US$9,5 trilhões em ativos sob sua gestão, dá uma pista do caminho que precisamos trilhar para chegar a esse necessário alinhamento entre discurso e prática: “Colocar o propósito da sua empresa na base de seus relacionamentos com os stakeholders é fundamental para o sucesso no longo prazo. Os funcionários precisam entender e se conectar com seu propósito; quando fizerem isso, eles poderão se tornar seus defensores mais fiéis. Os clientes querem ver e ouvir seus princípios, pois cada vez mais procuram fazer negócios com empresas que compartilham seus valores. E os acionistas precisam entender o princípio orientador que impulsiona sua visão e missão. Eles serão mais propensos a apoiar você em momentos difíceis se tiverem uma compreensão clara de sua estratégia e do que está por trás dela”.
Relacionamento é a palavra-chave. Na transição do capitalismo de shareholder, centrado essencialmente no lucro, para o capitalismo de stakeholder, centrado no impacto sobre os diversos públicos de relacionamento, vivemos uma mudança massiva de foco. Não se trata mais de um grupo único e soberano (porque dono do recurso mais essencial) aguardando passivamente os resultados de seu investimento. Trata-se da construção de valor compartilhado entre uma multiplicidade de atores, num cenário em que o recurso financeiro, ainda que essencial, divide o protagonismo com a exigência dos consumidores de que o recurso humano seja a base da construção e do compartilhamento de propósito.
Essa mudança de foco, por sua vez, deve acontecer, em primeiro lugar, “da porta para dentro” das empresas. Para transformar o modo como faz negócios, no relacionamento com seus mais diversos públicos, uma empresa precisa partir da transformação de seus processos internos. Muda a forma como se engajam os colaboradores e o que se espera deles, mudam os valores e o modo como são compartilhados, mudam os temas de atenção e, consequentemente, a interação entre as diferentes áreas dentro da organização. Isso ocorre independentemente de serem mantidos objetivos estratégicos pré-existentes a essa mudança massiva de foco. É que, a partir da ética perene trazida com a nova concepção de negócios, o capital relacional entra na equação. E isso transforma tudo.
É esse entendimento que ainda parece escapar à compreensão de organizações que falham em traduzir na prática aquilo que os discursos de seus executivos e seus relatórios anuais já incorporaram. Mudanças culturais são jornadas de longa duração e inevitavelmente exigem mais do que a certeza racional da necessidade de determinadas mudanças. Muitas vezes os discursos mudam em velocidade maior que as práticas porque velhos hábitos são difíceis de abandonar. E se a nossa era é a do capital relacional, a mudança coletiva exige novos padrões de relacionamento nos ambientes corporativos, meta às vezes comprometida pelo excessivo apego de líderes a lógicas como a de comando e controle, ou a que enxerga as funções, em vez de enxergar os seres humanos que as desempenham.
Nesse sentido, ganham importância cada vez maior dentro das organizações os processos estruturados para assegurar o bom funcionamento das relações, interna e externamente. Na busca por estabelecer e manter relações valorosas com seus públicos de interesse, as empresas precisam conhecer e gerir os riscos que ameaçam sua jornada – sejam eles financeiros, reputacionais ou de integridade. Uma vez conhecidos e priorizados, esses riscos devem ser endereçados com a adoção de controles internos cujo objetivo é buscar evitar a sua materialização. A diligência em relação aos riscos é um fator que evidencia o comprometimento da organização, gerando valor reputacional junto a seus públicos. Da mesma forma, a reputação pode ser fortalecida por meio da adoção de ações sociais e ambientais que traduzam o compromisso da companhia com seu papel como ator essencial nas comunidades por ela impactadas – o que requer o entendimento inequívoco de seu propósito e sua posterior tradução em práticas consistentes.
Esses processos têm uma característica significativa, marca registrada do capitalismo de stakeholder: a integração entre todas as áreas de uma organização, refletindo uma prática que precisa estar entalhada em sua cultura e, consequentemente, na atuação de cada um de seus colaboradores. Áreas cuja atribuição é gerir processos como Governança, Riscos e Conformidade ou Reputação, por exemplo, devem ser, na verdade, grandes maestros de uma orquestra que precisa entoar, afinada, a mesma melodia. Não há mais espaço para silos ou papéis fixos, muito menos para disputas por espaço ou recursos entre áreas que buscam provar uma suposta importância superior dentro das organizações. O “novo” capitalismo fala da criação de valor compartilhado, da responsabilização, da construção coletiva.
Ou entendemos que essa nova lógica precisa se refletir na forma como trabalhamos internamente em nossas organizações, ou estaremos dissociando discurso e prática antes mesmo de apresentar à sociedade qualquer resultado. O mesmo valor dado às relações no capitalismo de stakeholder precisa se traduzir para dentro das estruturas das organizações, ou estaremos tentando construir algo sem a matéria-prima necessária.
No artigo “Walking the Talk Of Stakeholder Capitalism” (disponível aqui), os autores Richard Samans e Jane Nelson enfatizam o papel das mudanças recentes na erosão da tradicional distinção entre um modelo de governança corporativa dirigido essencialmente aos acionistas, com foco em custos e benefícios financeiros e operacionais, e um modelo de responsabilidade corporativa dirigido pelos stakeholders, com foco em riscos e oportunidades sociais e ambientais. Ao nos desviarmos da lógica de custo x benefício para a lógica de riscos x oportunidades, enfatizamos o papel do intangível. Aspectos reputacionais e relacionais ganham valor e espaço, à medida que nossas lentes passam a priorizar a perspectiva de longo prazo.
O Reputation Institute, por meio de sua metodologia RepTrak®, demonstra que a admiração do consumidor por uma empresa a partir de critérios como qualidade e inovação de seus produtos, desempenho financeiro, liderança e governança corporativa, ambiente de trabalho e cidadania com causas sociais e meio ambiente alavanca alto engajamento em decisões de compra, em manifestações positivas sobre a empresa, na recomendação de seus produtos, na confiança em suas decisões, no apoio à presença da empresa na sua comunidade, no engajamento como colaborador (a) na empresa e na decisão de investir na empresa admirada. Tal aspecto é de grande potencial para geração de receita, atração de talentos e investidores.
No livro “Governança Corporativa – No Brasil e no Mundo”, Alexandre Di Miceli da Silveira destaca que empresas com boa governança, além de aprimorarem seu processo decisório na alta gestão, usufruem de benefícios externos ao se tornarem mais atraentes para os investidores, aumentando a quantidade de indivíduos interessados em comprar seus papéis. Como consequência da maior demanda dos investidores, haveria diminuição do custo de capital dessas companhias, tanto do custo do capital próprio (via ações), quanto do custo do capital de terceiros (via debêntures, bônus e empréstimos de longo prazo), resultando em um menor custo médio ponderado de capital – WACC. Como consequência imediata de um menor WACC, haveria um automático incremento no valor financeiro das companhias percebidas como “bem governadas”. Temos aqui a mesma lógica de atratividade de recursos (capital próprio de investidores, bem como de terceiros por parte de credores) que a busca por investimentos baseados em fatores/critérios ESG proporcionaria.
É nesse movimento que temáticas anteriormente não trazidas à mesa de negociação passam a desempenhar papel crucial na capacidade das organizações para criar e sustentar valor econômico. Integridade, reputação, cultura, ambiente de trabalho e responsabilidade social corporativa não cabem mais na caixinha de temas acessórios, tratados como perfumaria, mas precisam, ao contrário, estar integrados à estratégia das organizações. Samans e Nelson defendem que passar do discurso à prática exige até mais do que isso: faz-se necessário transcender a tradicional segmentação entre as visões de shareholder x stakeholder, exemplificadas pelos conceitos de valor ao acionista e responsabilidade corporativa, e integrá-las.
Com outras palavras, é o que diz também Larry Fink, em outro trecho de sua carta de 2022: “Nós nos concentramos em sustentabilidade não porque somos ambientalistas, mas porque somos capitalistas e fiduciários para nossos clientes Isso requer a compreensão de como as empresas estão ajustando seus negócios para as grandes mudanças pelas quais a economia está passando”.
Integração verdadeira e consistente, em todos os âmbitos de atuação. Relação. Dentro e fora das organizações. No discurso e na prática. Orientando as visões de futuro e sendo, também, orientadas por elas. Porque tudo o que é relacional se constrói no “entre” – o espaço em que tudo pode acontecer.
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