10 de julho de 2023

Certificadas, mas cheias de contradições

Publicado originalmente no O Globo, em 06 de julho de 2023

Em fevereiro deste ano o Brasil ficou estarrecido ante denúncias do uso de “trabalho análogo à escravidão” em algumas das mais tradicionais vinícolas do país. Como numa piada de mau gosto, uma delas ostentava o selo GPTW, sigla que em tradução livre significa “ótimo lugar para trabalhar”, e outra era assinante do Pacto Global da ONU, acordo que exige de seus signatários compromisso com a “eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou compulsório”. A contradição aqui é flagrante. Dificilmente a ideia de um “ótimo lugar para trabalhar” combina com relatos de ameaças, surras e privação de liberdade.

Tamanho absurdo nos dá notícia da urgência de reflexão acerca de papel, mecanismos e limites das certificações. Ao conferirem seu reconhecimento a uma empresa, entidades como GPTW terminam por emprestar-lhe sua reputação e confiabilidade. Certificações são, por isso, parte importante do “capital de imagem” de uma empresa, valorizando-a no mercado, determinando seu renome e sua reputação perante a opinião pública. Em teoria, as entidades certificadoras deveriam contribuir para o desenvolvimento de uma cultura empresarial saudável, incentivando boas práticas e fornecendo parâmetros salutares.

Lamentavelmente, a ânsia pela visibilidade positiva produziu um mercado próprio e tem gerado desvios. Combinado à comunicação por redes sociais, esse nicho se tornou um ambiente opaco, onde falta clareza sobre os critérios e processos para concessão dos selos de qualidade.

Em prol da transparência, os mecanismos de avaliação deveriam ser ritualizados e continuamente observados em sua execução por profissionais de notório saber e trajetórias respeitadas. Ademais, tais processos deveriam ser realizados em tempos e espaços singulares. Mais importante ainda, tudo isso deveria ser validado por instituições, e não por empresas que têm nas companhias por elas certificadas seus clientes em potencial. É problemático que organizações certificadoras sejam, ao fim e ao cabo, empresas, muitas delas interessadas em manter boas relações com segmentos econômicos muito além dos certificados.

Medidas como as que sugerimos podem soar draconianas, mas sua implementação é indispensável para salvaguardar o que os emissores de certificados têm de mais caro: sua credibilidade, qualidade sem a qual a própria existência deles deixa de fazer sentido. Afinal, um selo ou certificado é um signo, uma marca que simboliza excelência e compromisso de uma empresa com parâmetros civilizatórios. Seu próprio valor depende, portanto, inteiramente da reputação daquele que o outorga e dos ritos por meio dos quais ele é concedido e revalidado. É deplorável, mas esses aspectos simbólicos e rituais das certificações mais notórias não têm sido resguardados com o devido zelo.

As más notícias que põem em questão as certificações são indícios inquietantes de que estamos diante de um conflito de interesses com consequências graves. Além de minarem a confiança de consumidores e de possíveis investidores, elas minam aspectos importantes para a efetividade da comunicação de empresas e de instituições, depauperando a imagem e a reputação dessas organizações e de seus representantes. Comunicadores e empresas precisam entender que as certificações deveriam ser mais que imagens produzidas para a instantaneidade da espetacularização (principalmente digital). Deveriam ser uma representação que nos faz acreditar que estamos nos relacionando com seres organizacionais honestos movidos pelo melhor do humano.

Os artigos aqui apresentados não necessariamente refletem a opinião da Aberje e seu conteúdo é de exclusiva responsabilidade do autor.

Paulo Nassar

Diretor-presidente da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje); professor titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP); doutor e mestre pela ECA-USP. É coordenador do Grupo de Estudos de Novas Narrativas (GENN), da ECA-USP; pesquisador orientador de mestrado e doutorado (PPGCOM ECA-USP); pesquisador da British Academy (University of Liverpool) – 2016-2017. Entre outras premiações, recebeu o Atlas Award, concedido pela Public Relations Society of America (PRSA, Estados Unidos), por contribuições às práticas de relações públicas, e o prêmio Comunicador do Ano (Trajetória de Vida), concedido pela FundaCom (Espanha). É coautor dos livros: Communicating Causes: Strategic Public Relations for the Non-profit Sector (Routledge, Reino Unido, 2018); The Handbook of Financial Communication and Investor Relation (Wiley-Blackwell, Nova Jersey, 2018); O que É Comunicação Empresarial (Brasiliense, 1995); e Narrativas Mediáticas e Comunicação – Construção da Memória como Processo de Identidade Organizacional (Coimbra University Press, Portugal, 2018).

Hamilton dos Santos

Jornalista, mestre e doutor em Filosofia, ambos pela Universidade de São Paulo (USP). Também é formado em Administração de Empresas pela Stanford Global Business School. Tem experiência em diversas redações dos principais veículos de comunicação do Brasil e como diretor de Recursos Humanos da Editora Abril, onde trabalhou por 20 anos. Atualmente é diretor executivo da Aberje – Associação Brasileira de Comunicação Empresarial, representa a instituição na Global Alliance For Public Relations and Communication Management e é membro da Page Society, do Conselho da Poiésis e um dos líderes do movimento “Tem Mais Gente Lendo”.

Natalia de Campos Tamura

Doutora em Ciências da Comunicação pela USP, Mestre em Educação, Arte e História da Cultura, Especialista em Gestão da Comunicação e Bacharel em Relações Públicas Pesquisadora e docente do curso de Relações Públicas na Faculdade Cásper Líbero e do MBA da Aberje também representa a Associação na Plataforma de Comunicação e Engajamento do Pacto Global, da ONU Desenvolve consultoria em processos de gestão da sustentabilidade e atua como facilitadora de diálogos com experiência em metodologias colaborativas de participação e estruturas libertadoras

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