Botox nas ideias
Não reconheci você nesse seu novo visual — avesso do avesso do avesso —, do lavado depois da lavagem, do filtro em cima de outro filtro que você adotou, talvez inebriado pela tecnologia ou iludido pelo desejo de transformar a realidade sem muito esforço e bem rápido. Tenho percebido que tudo hoje parece cada vez mais superficial e rapidamente mutável. Tenho a sensação de que tudo escorre instantaneamente pelo vão dos dedos da mão.
Olhe em roda. As fotos que você publica nas suas redes sociais, veja os faz-de-conta que gente — e algumas empresas — tentam empurrar diariamente nos distraídos, nos desavisados, nos ingênuos. Parece o novo normal…
O culto incessante do raso, à falta de raciocínio, ao consumo imediato, aos gurus milagrosos e suas fórmulas simplórias e ineficazes. O botox nas ideias. O elogio ao efêmero, à multiplicação de novos “influencers”, com milhares e milhares de “seguidores”. É impressionante. É uma epidemia de superficialidade.
É inacreditável que em tão pouco tempo tenhamos involuído tanto. Pelo visto, perdemos em civilidade, perdemos sensibilidade e estamos perdendo também a capacidade do diálogo, quando começamos a querer impor a “nossa” verdade como única e reagimos agressivamente a qualquer um que seja contrário ao que acreditamos.
Ouvi, certo dia, de um alto executivo que admiro muito, há muitos anos, que não importa se você faz algo por ideal ou por conveniência, desde que em dado momento a conveniência seja substituída pelo ideal, se fundamente e ganhe consistência.
É como se vivêssemos com preguiça de viver, na qual nos esquecemos de que a mudança, qualquer uma, faz legitimamente sempre um movimento de dentro para fora. Hoje nos acostumamos com uma aparente solução, coisa fácil, simples, para a torcida ver. Não fazemos mais regime alimentar combinado com atividades físicas para emagrecer, tomamos uma injeção, uns comprimidos e pronto. Não aceitamos mais nossas pequenas marcas de expressão na pele, usamos filtro do Instagram, às vezes mais de um, sobrepostos. Você marca um primeiro encontro com alguém em um bar, por exemplo, e só se viram pela rede… É bem provável que, pela fotografia, não se reconheçam, rsrsrs.
Muitas empresas entraram forte nessa prática e ainda abusam dos chamados greenwashing (sustentabilidade), raimbowwashing (diversidade) ou brownwashing (racial) e comunicam de forma interesseira e ardilosa valores em seus produtos e serviços. O uso excessivo desses “filtros” está sublimando a realidade. É um novo ciclo: o washing do washing do washing… para chamar desesperadamente a atenção de consumidores mais conscientes sobre causas ambientais e sociais. Parece um grande faz-de-conta. Uma verdadeira encenação permanente para a plateia. Influencers regiamente remunerados e ajudantes de lavanderia para algumas marcas no mercado…
O excesso de procedimentos estéticos, as harmonizações, a vida irreal do sucesso fácil e alegrias em alta escala, podem ser percebidas também quando se olha como as pessoas exibem seus perfis nas redes sociais: vidas de rainhas e reis, inclusive na profissional LinkedIn. A dor da entropia. Afinal, se todo mundo é muito bom, ninguém é bom e a desorganização está instalada. Como se diferenciar?
Essa epidemia está definitivamente entre nós. E é preciso ter coragem: retirar gradualmente os filtros e disfarces, nos encararmos realmente como somos, curtir a beleza das nossas imperfeições e dormir com isso.
Tenho observado esse cenário, às vezes participando desse jogo. Sei que não é uma tarefa simples, mas necessária para o nosso bem como sociedade. Mexer e mudar nos nossos modelos mentais é o primeiro passo.
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