As contradições e provocações de “Better Call Saul”
Se você, assim como eu, sente saudade da série “Breaking Bad”, muito simbólica na história dos seriados por diversos motivos, então já salve na sua lista de próximas séries “Better Call Saul”, também criada por Vinci Gilligan. Se até Barack Obama incluiu essa produção em sua lista de séries preferidas de 2020, vale você também conhecer.
Mas essa coluna não tem a pretensão de fazer uma crítica ou apresentar a sinopse da série, e sim provocar a reflexão sobre os aprendizados a partir de narrativas midiáticas, com um olhar muito voltado aos temas que tocam os comunicadores.
Para começar, destaco o recorte temporal da série. Nela, conhecemos mais sobre o personagem Saul Goodman, advogado que tem papel central no enredo de Breaking Bad, mas quando ele ainda era James “Jimmy” McGill. Em seis temporadas (cinco delas já disponíveis, a última sai em 2022), com 10 episódios cada, conhecemos a trajetória tortuosa, repleta de problemas financeiros, profissionais e familiares de Jimmy, seis anos antes de ele se tornar o advogado que anseia o sucesso a todo custo, Saul Goodman. O curioso desse recorte da narrativa é que os saudosos espectadores de “Breaking Bad” podem reviver cenas e momentos tensos, mas a partir de outra perspectiva.
Está aí uma das lições para o nosso cotidiano como comunicadores: que recorte temporal fazemos ao construir as narrativas da organização, que outras perspectivas poderiam ser contempladas nessa construção e que versões sobre o mesmo recorte outras pessoas da empresa fariam, se assim pudessem?
Outra lição é sobre o misto de percepções que nós, espectadores, temos ao conhecer mais camadas da personalidade e dos valores de Jimmy. Em sua ânsia pelo sucesso e à sombra de seu irmão bem-sucedido, o advogado se envolve em situações controversas, toma decisões nem sempre éticas ou moralmente aceitas, infringe leis. Ora sentimos pena, ora indignação; ora compreendemos, ora rimos, ora sequer entendemos o que o motivou a tomar tal decisão. Kim Wexler, sua companheira, por vezes, o alerta ou o repreende, por vezes o apoia, nem sempre dizendo claramente isso (a relação deles fica bem nas entrelinhas da narrativa, com poucas demonstrações de afeto).
Saindo do mundo ficcional e vindo para o mundo real, vale pensarmos se os personagens das narrativas que construímos são do tipo perfeito, coerente, bem-sucedido ou se correspondem à complexidade que nos constitui como seres humanos, com falhas, dúvidas, problemas, altos e baixos. Claro que não precisamos esbarrar em valores morais e éticos como ocorre em “Better Call Saul”, mas podemos dar toques de vulnerabilidade, de questionamentos nesses personagens das narrativas que ocupam as organizações, até mesmo com o intuito de provocar reflexões construtivas. E talvez seja justamente por todos esses altos e baixos que Saul Goodman/Jimmy McGill tenha sido o personagem escolhido para estrelar o spin-off de uma série tão marcante quanto “Breaking Bad”.
A última lição que destaco neste texto é sobre oratória. Jimmy tem uma potente habilidade de se expressar, de persuadir e encantar as pessoas, de clientes do escritório de advocacia a traficantes de Albuquerque, onde a história se passa. Seu bom humor, tiradas satíricas e metáforas, deixa sua marca e, muitas vezes, nos surpreende e nos faz rir e torcer por ele, mesmo sabendo que nem tudo o que diz corresponde à realidade. E está aí uma reflexão incômoda para todas e todos nós, comunicadores: até que ponto as técnicas de oratória nos deixam levar, não nos deixam ver o que está nas entrelinhas ou mudam nossas decisões? Termino o texto com esse “barulho” e o esclarecimento de que não sou contra as técnicas, elas são boas aliadas, mas até que ponto discurso e prática caminham juntos, performance no “palco” e ações nos “bastidores” são coerentes?
E com essa provocação final te convido a assistir a “Better Call Saul”, certamente você vai tirar outras tantas lições!
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