04 de outubro de 2023

A onipresença digital e a representação social

Publicado originalmente no Jornal da USP em 3 de outubro

“Maldito o dia em que Diesel inventou o motor” é a frase que inicia o poema A Curse, de W. H. Auden. Escrito em julho de 1972, o poeta protesta contra a onipresença dos motores em nossas vidas. A expressão dessa presença total é a nossa dependência cotidiana de algo barulhento e malcheiroso vindo do útero da Segunda Revolução Industrial. Um mítico Auden de nossos dias talvez iniciasse o seu poema cravando a sua maldição contra o “chip” como um dos motores do que podemos chamar de onipresença digital.

Essa onipresença digital na vida contemporânea, exemplificada pelo “chip” mencionado, é uma das transformações mais revolucionárias dos últimos tempos. Ela alterou a forma como nos representamos frente aos outros e para a sociedade. A forma como nos relacionamos com o mundo, com os outros e conosco mesmos. Em um mundo onde todos estão constantemente conectados, sabemos que as representações sociais desempenham para cada um de nós um papel mais crucial do que nunca. Na esperança de ganhar fama e dinheiro com suas representações, bilhões de pessoas estão em redes como o TikTok. Pensando em uma dimensão mais abrangente, essa “vigilância constante” pela tecnologia nos obriga a reconsiderar como a representação social de figuras públicas historicamente é avaliada e mantida.

A representação social, como proposta por Serge Moscovici na década de 1960, refere-se ao processo pelo qual o senso comum e as ideias cotidianas formam opiniões e atitudes. A “vigilância digital” e suas comunidades de iguais deram abrangência e velocidade a esse processo descrito por Moscovici. Em tempos anteriores à onipresença digital, os líderes eram julgados por suas decisões, ações públicas e discursos oficiais. No entanto, na era digital, cada tweet, postagem ou comentário, improvisado ou não, pode se tornar o foco de controvérsias, de um escândalo ou de adulação.

Por exemplo, Winston Churchill, cuja vida privada foi objeto de muitos debates e especulações, é um exemplo fascinante a ser considerado neste contexto. Na época, Churchill foi amplamente respeitado por sua liderança durante a Segunda Guerra Mundial. No entanto, suas opiniões privadas sobre raça e o império britânico, muitas vezes consideradas racistas ou imperialistas pelo padrão contemporâneo, poderiam ter impactado sua representação se ele estivesse sob o escopo da era digital. A ideia da “lacração”, ou a tendência da sociedade contemporânea de condenar publicamente comportamentos ou opiniões consideradas ofensivas, poderia ter arruinado a carreira de Churchill se ele vivesse hoje.

Contrastando com Churchill, temos figuras como Steve Jobs, o cofundador da Apple. Enquanto ele tinha seus próprios demônios pessoais e críticos que questionavam sua ética de trabalho e tratamento de funcionários, como nos informou o seu biógrafo, Walter Isaacson, ele habilmente navegou no mundo da representação social ao criar uma imagem pública inovadora e visionária. Seu comportamento e escolhas, mesmo quando polêmicos, foram muitas vezes ofuscados por seu carisma e pela lealdade fervorosa de seus seguidores.

Por outro lado, figuras como Elizabeth Holmes, fundadora da Theranos, exemplificam a falha catastrófica em representar bem uma organização. Holmes foi rapidamente saudada por parte da imprensa norte-americana como inovadora, mas depois foi revelado que ela enganou investidores e pacientes em relação à eficácia da tecnologia da Theranos. Em uma época em que a veracidade pode ser verificada rapidamente, representações sociais falsas são expostas e destruídas com velocidade devastadora.

Comportamentos e opiniões preconceituosas têm um papel especial nesta discussão. No mundo conectado de hoje, opiniões que uma vez foram consideradas aceitáveis ou normais agora são frequentemente condenadas. Líderes que mantêm ou expressam opiniões preconceituosas, seja sobre raça, gênero, sexualidade ou outra característica, podem ver suas representações sociais deterioradas rapidamente.

Resumindo, na era digital, a representação social é mais volátil e frágil do que nunca. As figuras públicas, sejam líderes empresariais, políticos ou celebridades, devem ser cada vez mais conscientes de como suas decisões, ações, palavras e até pensamentos são percebidos pela sociedade. Em um mundo onde todos estão olhando para todos, pensar sobre a responsabilidade e as dificuldades de representar bem uma instituição ou empresa se tornou um processo-chave na avaliação e aprovação principalmente daqueles que lideram.

Veja também:
+ O valor da representação

Os artigos aqui apresentados não necessariamente refletem a opinião da Aberje e seu conteúdo é de exclusiva responsabilidade do autor.

Paulo Nassar

Diretor-presidente da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje); professor titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP); doutor e mestre pela ECA-USP. É coordenador do Grupo de Estudos de Novas Narrativas (GENN), da ECA-USP; pesquisador orientador de mestrado e doutorado (PPGCOM ECA-USP); pesquisador da British Academy (University of Liverpool) – 2016-2017. Entre outras premiações, recebeu o Atlas Award, concedido pela Public Relations Society of America (PRSA, Estados Unidos), por contribuições às práticas de relações públicas, e o prêmio Comunicador do Ano (Trajetória de Vida), concedido pela FundaCom (Espanha). É coautor dos livros: Communicating Causes: Strategic Public Relations for the Non-profit Sector (Routledge, Reino Unido, 2018); The Handbook of Financial Communication and Investor Relation (Wiley-Blackwell, Nova Jersey, 2018); O que É Comunicação Empresarial (Brasiliense, 1995); e Narrativas Mediáticas e Comunicação – Construção da Memória como Processo de Identidade Organizacional (Coimbra University Press, Portugal, 2018).

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