13 de novembro de 2023

A preservação da memória é crucial na construção de uma sociedade

O seminário “Os Sentidos da Memória” reuniu diferentes atores da sociedade para uma conversa sobre a preservação da memória cultural e histórica

A biblioteca do casarão da poetisa Cecília Meireles (1901-1964), no bairro do Cosme Velho, era a mais invejada pelos intelectuais do Rio de Janeiro na época. E o que dizer do sofá de veludo vermelho da sala, da porcelana com flores em relevo na mesa de jantar ao lado dos guardanapos de linho engomados, do pó de arroz petrificado pelo tempo e dos vestidos de musseline no quarto? Ao contrário do que um dia imaginou Carlos Drummond de Andrade, a casa onde viveu uma das mais importantes escritoras do país não se tornou um espaço memorial à Cecília Meireles. No final, a biblioteca foi comprada por um americano e a casa foi demolida. 

Essa é apenas uma de inúmeras histórias que comprovam que “uma das maiores chagas do Brasil é ser um país desmemoriado”. A frase foi dita pelo estilista Ronaldo Fraga, durante o seminário Os Sentidos da Memória – Museus, Empresas e Sociedade: Ensaios para um Fazer Colaborativo”, realizado no dia 9 de novembro, no Museu da Bolsa do Brasil (MUB3), localizado no Centro Histórico de São Paulo e que celebra seu primeiro ano de atividades.

Promovido pelo MUB3 em parceria com o Ministério da Cultura, com apoio da Aberje, o evento reuniu especialistas para uma conversa sobre a importância da memória, seja como exercício de criatividade ou como valor da reputação e do legado. O diretor-presidente da Aberje e professor titular da ECA/USP, Paulo Nassar, participou do painel “Memória, Legado e Relevância”, ao lado da jornalista e crítica de cultura, Marta Porto, e do curador do Museu Paulista-USP, o professor e historiador Paulo César Garcez Marins. O seminário também contou com a participação de Anna Paula Montini, gestora do Observatório da Fundação Itaú para Educação e Cultura, e da advogada especialista em cultura, Cristiane Olivieri, diretora da Olivieri Advogados Associados.

Memória popular

“O ser humano olha muito pouco para o presente e é no presente que temos a ‘queda de braço’ com a memória, uma relação amorosa com ela”, iniciou o estilista Ronaldo Fraga, cujos desfiles estabelecem um diálogo entre a cultura brasileira e o mundo contemporâneo, ao abordar temas do cotidiano e da história do Brasil.

Ronaldo Fraga

Diante de tanta inspiração, as passarelas ficaram pequenas demais para ele e, bebendo nas mesmas águas de Mário de Andrade – seu mentor intelectual – saiu pelo Brasil afora em busca da riqueza da cultura popular. “O meu desafio é fazer roupa que fale e lembre de coisas, sem que com isso ela esteja presa ao passado ou tenha que seguir uma cartilha do futuro”, salientou Fraga que, para além do universo da moda vem estimulando a economia criativa de Norte a Sul do país, a partir de parcerias com artesãos e instituições locais e promovendo expedições para lugares pitorescos, como o Cariri paraibano. “A roupa tem o poder de conexão com a memória de um tempo. Talvez criar não seja mais do que se lembrar profundamente; memória é a espinha dorsal para tudo”, arrematou.

 

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Memória histórica

Em sua palestra, o professor Paulo Nassar ressaltou a importância dos locais de memória, diante de uma entropia informacional que se vive hoje, uma overdose de informações que se tornou exponencial e sufocante. “Esses lugares são como bastiões de contemplação que servem como oásis de inspiração, experiências, aprendizados e reflexão, onde nos encontramos com histórias, fatos, imagens, sons, cheiros, texturas, sabores e ritmos que podem ser profundamente relevantes para as nossas existências”, ponderou.

Paulo Nassar

No contexto empresarial brasileiro, a história e a memória corporativa emergem como campos de estudo imprescindíveis tanto para o mercado quanto para o meio acadêmico. “Por meio deles, as empresas reafirmam seu compromisso com a responsabilidade histórica e com a construção de um legado que é tanto sobre o passado quanto sobre as promessas do amanhã”, analisou Nassar.

 

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Memória seletiva

Para o historiador Paulo César Garcez Marins, memória e esquecimento são dois lados da mesma moeda, pois qualquer reflexão sobre a história tem por base uma memória sempre parcial, fluida e hierarquizada. “A memória é sempre seletiva, ela sempre inclui, mas, sobretudo, exclui. Nós não lembramos de quase nada, por isso mesmo ela é a forma mais primária de poder”, ponderou, enfatizando que a memória também hierarquiza os legados, o que foi transferido por herança, algo que tem relevância.

Paulo Marins

“Estamos num período da história voltado às memórias identitárias. Precisamos lembrar que as discussões identitárias, assim como as empresariais devem se voltar às discussões relacionais, daquilo que somos, ou seja, uma conexão de pessoas, algo que a gente se esquece porque a memória é individual, uma experiência que construímos ao longo de nossas vidas. E as instituições são como nós, são pessoas que têm os mesmos desafios que nós temos”, concluiu Marins.

Memória interditada

Para Marta Porto, a memória humana, antes de tudo, é ficção, pois é formada a partir de narrativas ficcionais. “Venho me perguntando qual é a forma de tornar a memória em experiência, em algo que nos permita tomar decisões melhores, à luz de tudo aquilo que já vivemos. Estamos num momento em que a grande questão talvez seja: que ficção estamos contribuindo para gerar, no presente, que leve a um futuro coletivo melhor?”, indagou.

Marta Porto

“Vivemos uma enorme cultura de vigilância, tudo o que construímos é absolutamente vigiado, a maneira como falamos, pensamos e nos relacionamos. É importante ressaltar que a memória jamais pode abrir mão do desconforto, do incômodo e até do assombro”, acentuou Marta. “Que memória estamos produzindo? Esta é uma grande questão”. Toda ideia cultural está em risco”, frisou, ressaltando que revisitar o passado não é apagar, ou editar na literatura do presente, seus incômodos, suas tragédias, seus preconceitos. “Isso é construir um esquecimento permanente, é uma memória interditada é uma memória infatilizada”, arrematou.

Memória cultural

A economia criativa foi destaque na palestra de Anna Paula Montini por meio de uma pesquisa feita pela Fundação Itaú. “A memória é um ativo intangível, mas ela tem um valor mensurável, um valor que nos conecta com o passado e o presente a um só tempo”, ressaltou. “A cultura tem uma dimensão cidadã e simbólica, mas também tem uma dimensão econômica. Quando a gente fala da capacidade da economia criativa, falamos de como criar sustentabilidade desse sistema que se dedica à preservação e perpetuação da memória, criando legado para as futuras gerações”, disse.

Anna Paula Montini

Atualmente, mais de 7,4 milhões de trabalhadores no Brasil se dedicam à economia criativa e cerca de 130 mil empresas que atuam nesse campo representam 3,11% do PIB nacional (dados de 2021). “Somos contribuintes que afetam muito positivamente a economia brasileira”, refletiu. “Perceber a cultura, os museus e a memória também sob a dimensão econômica nos ajuda numa luta para conseguirmos defender os valores simbólicos nos quais a gente acredita”, finalizou a executiva.

Memória incentivada

A preservação do patrimônio cultural brasileiro está intimamente ligada ao investimento que se faz dele. Isso ficou claro na fala de Cristiane Olivieri, ao compartilhar pesquisa quantitativa feita recentemente com 1.500 empresas. 60% das pessoas que participaram da pesquisa, por exemplo, consideram a cultura algo primordial na sua vida e 70% consideram que o incentivo nessa área traz retornos sociais, educacionais e humanitários e que, portanto, tanto os governos quanto a iniciativa privada devem investir em cultura. 

Cristiane Olivieri

“Dinheiro não cria cultura, mas possibilita que as coisas apareçam e sejam preservadas. A memória se perde na medida em que ela não tem espaço, pois morre de inanição. Essa é a lógica dos direitos autorais”, exemplificou a advogada especializada em cultura. “Preservar a memória e ter uma verba para isso é muito relevante. Cabe a nós lutarmos para que esse dinheiro de fundo público chegue nas mãos corretas. As leis atuais pressupõem a participação social e isso pode dar uma reequilibrada no que temos de incentivos fiscais”, argumentou Cristiane. 

 

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