Quando o compliance conseguirá se tornar desnecessário?
Nos dias 30 de novembro a 02 de dezembro, a Legal Ethics Compliance – LEC realizou seu 8º Congresso Internacional de Compliance em São Paulo. A convite da LEC e da Aberje, acompanhei 12 sessões da programação, entre workshops e painéis.
É possível afirmar que há consenso entre os executivos, convidados e palestrantes deste encontro de que o compliance 1.0 – apenas proibitivo e punitivo, que não estava integrado com os desafios e contexto dos negócios – precisa ser definitivamente superado. Alexandre Serpa, sócio da LEC, reforçou em um dos painéis que o objetivo do compliance é se tornar desnecessário. Nesta mesma linha, diversos painéis refletiram que compliance não é uma área. É uma forma de conduta, é um ativo, que precisa estar na cultura organizacional e ser compromisso de todos na organização.
As discussões sobre cultura organizacional, comunicação, processos de tomada de decisão moral, dilemas e as questões relacionais sobre compliance e integridade vêm sendo discutidas no campo teórico, em debates e fóruns do setor e já têm influenciado importantes transformações. Mas o caminho aponta, ainda, desafios sensíveis.
Para exemplificar, no painel de abertura do dia 02 de dezembro, Pedro Ruske Freitas, Diretor de Promoção da Integridade na Controladoria Geral da União (GCU), apresentou um dado preocupante: das organizações que se inscrevem no Pró-Ética, iniciativa que busca fomentar a adoção voluntária de medidas de integridade pelas empresas, apenas 21% conseguem comprovar com evidências a aplicação das políticas de compliance no dia a dia da organização. Sobre evidências, ele destaca que algumas organizações ainda entendem que se trata de políticas documentadas, da existência código de conduta e da confirmação de uma assinatura por parte dos empregados, da formalização de canais para reporte de preocupações e denúncias, ou da foto do CEO em uma palestra sobre compliance. Mas, a partir do objetivo da CGU e do ProEtica em promover a cultura de integridade, o que importa é como a integridade está, de fato, pautando as decisões organizacionais. Ele citou a necessidade de evidências mais transparentes que demonstram esse compromisso, como, por exemplo, atas de reuniões de conselho ou da alta administração que evidenciam a discussão e deliberação a partir dos princípios.
Essa preocupação está alinhada à constatação de que regras não são suficientes para transformar comportamentos. Desde 2013 assistimos, no Brasil, a um forte movimento de implementação de programas de compliance, dedicados a mapear riscos legais, setoriais e organizacionais, construir políticas e controles e promover medidas preventivas junto aos diversos públicos. Terminadas essas etapas, conforme o nível de maturidade dos programas e da própria organização, as organizações passaram a se deparar com os desafios de gestão do compliance, para que possa, de fato, fazer parte da cultura.
Cultura organizacional é um aprendizado construído pelas pessoas que fazem parte de uma organização. Não consegue ser transformada por imposição. Mesmo que se discuta a relevância de punições e sanções para “criar” a cultura, ela não se sustenta no longo prazo e certamente não é essa a cultura de integridade que as organizações demandam. Sem a intenção de transformar esse texto em acadêmico (um desafio para mim), Steven Ott, ainda em 1989, na obra The organizational culture perspective, bem refletiu que cultura é uma força social que controla os padrões organizacionais. Discuto com meus alunos alguns fenômenos que são desafios sentidos pelos executivos de compliance, como a ridicularização ao programa, o ceticismo, a resistência, a cultura do silêncio e a tão complexa quebra de confiança. A cada dia percebemos que se uma regra, política, norma ou orientação não fazem parte das decisões, a incoerência se sobrepõe. Costumo dizer que a falta de integridade é explícita, e que os juízos sobre o real papel de um programa de compliance são construídos em relações, não apenas nos ambientes formais, mas principalmente nos informais, como os cafés, happy hours, churrascos no fim de semana e grupos (geralmente sem o gestor) no WhastApp.
Essa construção ou transformação da cultura de integridade é sim complexa, mas bastante discutida em diversos campos do conhecimento como administração, psicologia, comunicação, sociologia, entre outros. O encontro da LEC promoveu reflexões importantes para contribuir com esse importante desafio.
As analogias ao desenvolvimento moral familiar continuam presentes, pela simplicidade para compreensão dos significados e desafios que marcam esse processo. Na palestra de abertura do congresso, o jornalista Marcelo Tas, em resposta a uma pergunta sobre “como desenvolver uma cultura de integridade em um contexto marcado por tantos vieses e necessidade de flexibilidade a mudanças?”, disse: “façam filhos e os eduquem”. Ele refletiu os desafios de orientação, de gestão e de alinhamento dentro do ambiente organizacional comparando com o papel dos pais, destacando a necessidade ímpar do exemplo e da capacidade de diálogo. A abordagem também foi explorada por Alessandra Gonsales, sócia-fundadora da LEC, ao responder uma pergunta sobre a necessidade de treinamento. Ela ponderou que treinar uma vez nunca é suficiente, citando a necessidade do lembrete diário e repetido “já escovou os dentes?”, para reduzir o risco de cáries da maior parte das crianças.
Ressalvada essa contribuição, o contexto organizacional traz outros elementos bastante complexos, como as relações contratuais, os processos decisórios nas estruturas de governança, os desafios competitivos de mercado, os setores pouco regulados, os interesses em conflito, as pressões de diversos stakeholders, as subculturas, as relações de poder, entre outros. Neste sentido, o olhar para esse enredamento da aplicação das normas e políticas demonstra estar sendo ampliado.
O compliance está aos poucos saindo das discussões muito dualistas, maniqueístas do certo e errado, do pode e não pode. Os dilemas passam a incorporar as discussões organizacionais, como necessário. Há alguns anos, George Barcat, um filósofo que atuava na implementação de programas de ética organizacionais, já dizia que um dilema não é decidir entre um caminho errado e um certo, pois essa seria uma decisão fácil. Reflito com meus alunos que um dilema representa a dificuldade de eleição de critérios que podem fundamentar uma decisão, em um contexto em que escolher um caminho, ou seja, cumprir uma responsabilidade ou valor moral, impede que outra responsabilidade ou valor moral sejam entregues. E isso não se trata de escolher entre algo que me beneficia, como indivíduo, e o que não me beneficia. Os interesses pessoais não estão no campo dos problemas e dilemas morais. Estamos falando de responsabilidades com diversas partes interessadas que compõem uma organização e seu contexto.
Nesta temática dos dilemas, no painel sobre tomada de decisão ética de assuntos complexos e com fatores de risco elevados, Reynaldo Goto, Chief Compliance Officer da BRF, exemplificou uma tomada de decisão que pode paralisar uma operação de suma importância a um setor, quando o único fornecedor é classificado como de alto risco. Como o compliance pode atuar neste contexto para apoiar uma necessidade organizacional, por meio do engajamento ao desenvolvimento da integridade do próprio fornecedor ou por meio de medidas contratuais e de monitoramento que possam reduzir esse risco? Ou seja, não se trata de dizer “não pode”, ou “pode” – como se a área de compliance validasse com “água benta” (termo usado pelo palestrante, que se desculpou pelo uso de termo religioso) nas decisões organizacionais. Ele defende que a cultura de compliance precisa estar na cultura da tomada de decisões complexas nas organizações.
O papel dos líderes, como a primeira premissa dos programas de compliance, livros, recomendações e critérios de avaliação em certificações e investigações, tem saído do cumprimento de evidências de implementação. A influência do líder, tão discutido em pesquisas empíricas e teóricas sobre cultura organizacional, tem caminhado para campos que de fato podem promover o aprendizado. No painel que tratou da cultura organizacional sob a perspectiva da alta liderança, Airton Cousseau, presidente da Nissan Mercosul e MD Brasil, expôs que não adianta falar de compliance se “quando aparece um problema real, um líder escolher pelo caminho mais curto, pois acabará desmoralizado”. Nesta mesma linha, Wong Loon, CEO da NTS, comentou que os líderes “são sempre vigiados, por todos”, e que o compromisso com os comportamentos é fundamental.
O tema das investigações foi pauta de diversos painéis. Já foi bastante discutido, em artigos que tratam sobre a cultura do silêncio e medo de retaliações, que o recebimento dos relatos e o cuidado com a condução do processo de investigação representa a concretude do compliance, a “hora da verdade”. É a partir da percepção deste processo que as pessoas reconhecem o valor ou perdem a confiança no programa. Nesta linha, o workshop sobre condução da prática de investigações internas abordou a necessidade de superação de práticas antigas que confundiam o papel de uma investigação interna com o papel da polícia, destacando a importância da garantia e da proteção da confidencialidade, do respeito na condução das entrevistas e da garantia ao direito defesa. Outros painéis, como o dos dilemas nas tomadas de decisões complexas em compliance, também destacaram a necessidade da existência de evidência na construção de um parecer ou recomendação ao fim de uma investigação para ser encaminhada a um comitê deliberativo. É ponto sensível a primazia com o cuidado em não assumir pré-julgamento, ou um viés inconsciente, durante as investigações.
A comunicação e os treinamentos em compliance foram pautados em alguns painéis que destacam caminhos de oportunidade encontrados por alguns executivos e organizações. O desafio de como engajar as pessoas para participar dos treinamentos sem cair em contextos punitivos, muitas vezes pela obrigatoriedade de cumprimento de evidências, por meio de medidas como suspender acesso a máquinas corporativas, foi apontado em algumas mesas. O uso de metodologias mais ativas, de teatros corporativos, de filmes, estratégias de gamificação e palestras de sensibilização foram bastante refletidas. Nesta temática, Pedro Ruske Freitas, da CGU, alerta para a ainda falta de conexão dos treinamentos com o contexto organizacional, e que muitas vezes acabam sendo de “prateleiras” e traduzem pouca eficácia para o desenvolvimento da cultura.
É justamente neste sentido que profissionais de comunicação e cultura organizacional têm grande responsabilidade nesta missão de promover cultura de integridade, ou, de “tornar o compliance desnecessário”, como defendeu Alexandre Serpa.
A cultura transformação da cultura organizacional é um esforço e um compromisso multidisciplinar. Demanda conhecimento e aplicação de estratégias que promovam os reais significados e aprendizados compartilhados entre as pessoas que compõem uma organização. Assim como já observado na categoria de cases para Integridade e Compliance do Prêmio Aberje, precisamos continuar inserindo, nas pautas de compliance, as competências relacionadas ao papel de fato estratégico da comunicação, que afastam a compreensão de que comunicação é “divulgar” e trazem know how que pode, de fato, tornar comum um propósito.
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