COlabora #8: Para ver as meninas – dos olhos
Publicado originalmente no LinkedIn em 29 de outubro de 2021
“Hoje eu quero apenas / Uma pausa de mil compassos”
Paulinho da Viola, “Para Ver as Meninas”
Pausa. O silêncio que dá sentido ao som. O instante em que a atenção se desloca de fora para dentro. Reverberação. Ressignificação.
Vivemos uma era carente de pausas, com reflexos evidentes – e outros nem tanto – em nossos processos cognitivos, na forma como nos relacionamos e no sentido que apreendemos dessa experiência única à qual chamamos viver. Resistir à roda viva que nos coage a estarmos o tempo todo ativos, felizes, cercados de certezas e no foco da atenção alheia é um exercício primordial para qualquer um que ambicione não apenas encontrar significado e plenitude em meio a tanto barulho, mas, sobretudo, transformar o barulho (e o tédio) em melodia. A comunicação consciente pode ser um aliado nesse processo. E por isso ela é transformadora, para nossas relações e as organizações nas quais atuamos.
Autor do livro “Sociedade do Cansaço”, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han sentencia: “Pura inquietação não gera nada de novo. Reproduz e acelera o já existente”. Com nossa atenção fragmentada entre telinhas e telonas, nosso modo multitarefa acionado para (tentar) dar conta da extensa lista de atribuições diárias, nossas metas que se sucedem e sobrepõem, cada vez mais perecíveis, seguimos. Acelerados, inquietos, impacientes, extenuados. Reproduzindo um roteiro já escrito, seguimos. Peças de uma engrenagem que nos exige cada vez mais movimento. Suprimindo os compassos de pausa, seguimos.
Byung-Chul Han enxerga na atenção dispersa a raiz da impossibilidade da contemplação, que, em seu entendimento, nos reaproxima da vida selvagem. “Na vida selvagem, o animal está obrigado a dividir sua atenção em diversas atividades. Por isso, não é capaz de aprofundamento contemplativo – nem no comer nem no copular. O animal não pode mergulhar contemplativamente no que tem diante de si, pois tem de elaborar ao mesmo tempo o que tem atrás de si (…) A cultura pressupõe um ambiente onde seja possível uma atenção profunda. Essa atenção profunda é cada vez mais deslocada por uma forma de atenção bem distinta, a hiperatenção. Essa atenção dispersa se caracteriza por uma rápida mudança de foco entre diversas atividades, fontes informativas e processos.”
No contexto de transformações profundas e irreversíveis que Ervin Laszlo denomina “macrotransição”, consultamos nossa coleção de respostas prontas e, para o nosso espanto: mudaram as perguntas. Diante da ameaça de uma crise climática e humanitária sem precedentes, é preciso buscar novas formas de fazer e ser no mundo. Entoa-se o mantra da inovação, mas seguimos fazendo o mesmo, cada vez mais rápido. No movimento incessante, perdemos a capacidade de contemplar. E, com ela, a capacidade de dar vida ao novo. Talvez por isso, fechamos também os olhos ao nosso próprio papel nessa engrenagem. Não enxergamos que somos parte dela, reproduzindo e acelerando até mesmo aquilo que não admiramos, aquilo que desejaríamos transformar.
Esquecemos que somos corresponsáveis pela qualidade da percepção que temos sobre nós mesmos, sobre os outros e sobre o mundo. Anaïs Nin abre nossos olhos ao revelar que “não vemos as coisas como elas são, mas como nós somos”. Sim, porque nossa relação com o que está fora é reflexo do nosso mundo interior, que, por meio da comunicação, expressa nossa interpretação da vida. “Nosso mundo é do tamanho da nossa linguagem”, bem disse o filósofo Wittgenstein.
Na velocidade das relações frenéticas, esquecemos o quanto um olhar fala. Que nossas câmeras fechadas, ou não, comunicam. Que a ausência pode significar um grito e a necessidade de dar a última palavra pode dizer mais do que a palavra dita. Nossos preconceitos e pressupostos alimentam a impaciência com que ouvimos o outro, na ânsia de reorganizar nossos próprios argumentos e reafirmar nossas próprias certezas. Essa dinâmica nos separa e nos aprisiona em ciclos intermináveis de conflitos. Desejamos uma coisa, mas seguimos na direção contrária. Nossa incoerência nos denuncia, como o escritor Ralph Waldo Emerson tão bem sintetizou: “Suas atitudes falam tão alto que eu não consigo ouvir o que você diz”.
E por que isso acontece? Porque somos humanos. Humanos, sujeitos a humores e emoções fragmentadas que nos levam a acreditar que é possível defender algo que não praticamos. Exigir dos outros o que não somos capazes de dar. Eximirmo-nos de responsabilidades que também nos cabem, enquanto nos lamentamos que “os governantes”, “os meus chefes”, “o meu marido”, “a minha filha” ou “os meus colegas de trabalho” não fazem aquilo que julgamos que deveriam fazer para que as coisas fossem melhores.
Comunicação é poder e responsabilidade. No universo digital, transparência não é mais escolha, é condição. Desenvolver consciência sobre o que nos impacta e sobre aquilo que estamos oferecendo ao mundo é imprescindível e irremediável. Precisamos, urgentemente, desenvolver critérios de edição e escolha para não nos mantermos aprisionados pela avalanche de informações que nos atinge a todo momento. Professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e autor da “Teoria U”, que propõe um modelo para liderar a transformação a partir do futuro emergente, Otto Scharmer defende que precisamos “realinhar atenção e intenção”. Segundo o autor, a atenção é uma das maiores potências criativas no mundo, porque a energia segue a atenção. Sendo assim, o lugar onde colocamos nossa atenção, seja individualmente, seja como grupos ou comunidades, tem um impacto profundo em nossa evolução, definindo aquilo que somos capazes de criar, individual ou coletivamente.
A que estamos dedicando nossa atenção? Temos sido os responsáveis por essa escolha? Somos capazes de mergulhar no silêncio interno que nos permite reconhecer nosso potencial? Observamos o mundo ao nosso redor, ou a algazarra externa nos preenche completamente os sentidos? Precisamos de uma pausa. Uma pausa de mil compassos. Ou de tantos quantos forem necessários para encontrar dentro de nós essas respostas. E comunicar ao mundo, olhos nos olhos, o melhor de nós.
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