Desordem, crise e liderança
“Sempre a desordem nas casas sem ordem!”, exclama Malherbe, diante do pandemônio instalado numa casa de maus costumes da qual era amo e senhor, na peça “As Relações Naturais”, escrita pelo gaúcho José Joaquim de Campos Leão Qorpo Santo, em 1866[i]. A frase angular veio-me à memória para sintetizar o que resta de sensato após a leitura dos jornais nessa temporada. As proporções inimagináveis da atual pandemia colocam o mundo em uma situação de absoluta incerteza. No Brasil, o quadro é ainda pior. A perplexidade assola igualmente lúcidos e sem-noção.
Fosse Qorpo Santo nosso contemporâneo, estaria repetindo a nossa crônica política, no que ela tem de fato e de fake. Eis aqui a dificuldade que se coloca aos que pretendem interpretar a realidade com o máximo de equilíbrio e acurácia, pois a crise instalada prejudica demasiadamente o bom-senso e o discernimento, se é que não os impedem. Crise, como nos lembrou recentemente o mestre João Forni, em ótimo curso virtual da Aberje, é a ruptura da normalidade, por acontecimentos graves que afetam a rotina, causam efeitos anormais na sociedade e nos mercados e ameaçam o nosso futuro.
A incerteza tem sido o ponto mais contundente da muvuca em que vivemos – já que nesse mundo VUCA, a volatilidade, a complexidade e a ambiguidade são consequências potencializadas pelo “U” (de uncertainty), que dissipa os sinais referenciais para a tomada de decisões. As cartas que conhecíamos para navegar no mundo tão impreciso como vivemos estão novamente embaralhadas. Tudo na mais completa desordem.
Os manuais de gestão de crise, a priori, não trazem a receita mágica das soluções, até porque os problemas têm causas e naturezas diferentes. Em comum, recomendam o máximo de apreço aos dados e informações (aceitar a verdade), os treinamentos e simulações, a rápida intervenção, a clareza e transparência das ações e, sobretudo, a priorização das pessoas como foco das iniciativas de proteção e cuidado. Tudo isso requer não só inteligência na gestão, mas principalmente liderança capacitada e comprometida com a busca das saídas. E com os indispensáveis recursos da boa comunicação. Caso contrário, será mais um polo multiplicador da crise. Como sabemos, liderança negativa sempre será causadora de novos problemas.
A liderança que realmente funciona como guia é aquela que, mesmo diante de soluções aparentemente ainda impossíveis ou distantes, busca a sinergia dos esforços, a racionalidade e justiça na distribuição dos recursos em prol da maioria, a multiplicação da boa-vontade, o estímulo ao conhecimento e à pesquisa. Se tudo isso estiver cada vez mais escasso ou difícil, pelo menos que procure disseminar a esperança. Pois ela sabe que, em meio à desordem, ações de empatia, solidariedade e acolhimento reduzem o sentimento de abandono, aumentam a coesão e facilitam o encaminhamento de soluções. Tudo isso se torna exequível com o bom uso da comunicação.
Voltando ao tragicômico Qorpo Santo, sua máxima nos faz pensar que mesmo na “normalidade” se pressupõe alguma desordem, imponderável, com riscos inerentes. Em uma peça bufa de mais de 150 anos atrás, Qorpo Santo fez uma alusão, talvez inconsciente, ao que filósofos e místicos já cogitavam há milênios: só a mudança é permanente, e ela sempre tende a subverter a ordem. E de vez em quando, o tempo nos surpreende com macrotransições, como agora.
Uma macrotransição com fortes impactos sociais, econômicos e comportamentais, em plena quarta revolução industrial, também vem incrementar outro fenômeno interessante, que é a maior propagação de micronarrativas, turbinadas pelas mídias sociais. Acabo de ouvir a professora Vânia Bueno em uma videoaula da Aberje e ela me fez pensar no quanto essa realidade desafia a nossa missão de comunicadores. As micronarrativas reproduzem um discurso fragmentado, como um discurso sem texto. Carecemos de significado nas nossas relações e reflexões, e discursos fora do contexto aumentam a percepção de desorientação. Criam mais desordem.
Fenômeno social favorecido pela tecnologia acessível, a desordem comunicacional complica a nossa vida, mas não podemos nos assustar. A natureza também tem a sua desordem funcional. Na Física, o grau de desordem ou de aleatoriedade de um sistema é medido por uma grandeza chamada entropia. Ela explica por que a água congela ou o gelo derrete em função da temperatura. Dependendo das circunstâncias, os átomos adquirem velocidade em todas as direções, bem como posições aleatórias. Em outras palavras, “a multiplicidade de estados de um sistema deve sempre aumentar”[ii].
Sabendo que as condições de pressão e temperatura provocam entropia e que a pandemia e a conjunção de crises – política, social, econômica e sanitária – complicam a nossa desordem comunicacional, nossa responsabilidade aumenta. Precisamos fortalecer os significados das nossas ações, revestir de ética, esperança e respeito ao outro os enunciados dos nossos discursos. Não se trata apenas de enredar uma narrativa, mas de dar a ela um contexto como moldura, com embasamento, coerência e racionalidade. Precisamos criar comunicação com causalidade e, dada a gravidade do momento, também com uma dose urgência.
Caso contrário, encontraremos na obra de Qorpo Santo um triste desfecho para o nosso enredo: “Sempre as perdas; sempre os desgostos; os incômodos de todas as espécies! Santo Deus! Por que não crucificais aqueles que desrespeitam vossos santos preceitos?!” – exaspera-se Malherbe, antes de concluir, impotente frente ao caos da cena, que o melhor é retirar-se.
[i] QORPO-SANTO. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa8151/qorpo-santo>. Acesso em: 17 de Jun. 2020. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7
[ii] HELERBROCK, Rafael. “O que é entropia?”; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/o-que-e/fisica/o-que-e-entropia.htm. Acesso em 17 de junho de 2020.
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