Os Lugares de Memória são Lugares Extraordinários
Publicado também no Jornal da USP, em 19 de dezembro
Em uma era em que os mundos digital e físico estão contiguamente interligados, os “lugares de memória” – museus, memoriais, arquivos corporativos, centros de memórias e referência e bibliotecas – tornaram-se territórios críticos.
Servem como domínios tangíveis e intangíveis onde instituições e comunidades tentam formar ligações extraordinárias a partir de memórias e histórias, estabelecendo uma base comum para o que pode ser considerado significativo. O extraordinário desses lugares de memória pode ser expresso pela fala de Jorge Luis Borges em seu livro Ensaio autobiográfico (1970): “Se tivesse de indicar o evento principal de minha vida, diria que é a biblioteca de meu pai. Na realidade, creio nunca ter saído dessa biblioteca”. Pelo seu potencial sentido agregador, em uma sociedade escassa em consensos, as formas e os tempos em que essas memórias e histórias são guardadas, são apagadas, são esquecidas, são organizadas e são comunicadas não são menos críticos e estratégicos, diante da torrente informacional da atualidade que tem no smartphone como o seu totem principal.
Uma torrente informacional, uma “antropologia do smartphone” instituidora de
novos hábitos e novos rituais: consumimos, produzimos e circulamos informação
escrita, verbal e audiovisual através de toques e deslizes táteis, estéticos e morais. A importância desta mudança de paradigma pode ser avaliada através de perguntas aparentemente mundanas: quantas selfies você tirou em um museu? O que o relatório semanal de uso do seu smartphone revela sobre o seu consumo digital? Essas métricas são o pulso da nossa dependência da tecnologia, desafiando a própria essência da comunhão, dos vínculos e da hierarquização da relevância em relação às outras pessoas, às instituições, às empresas, aos objetos e aos acontecimentos cotidianos. As patologias desse fenômeno estão representadas pela simplificação dos argumentos resultando em polarização, pelo cansaço e pela simplificação do sentir e gozar, pela entropia, pela catatonia, pela alucinação e pelo déficit de atenção.
Ainda na pré-história da internet, em seu livro de 1978, “Opening and Clossing:
Strategies of Information”, o professor Orrin E. Klapp profetizou o atual dilúvio de informações – uma visão presciente do caos informacional da era digital. Ele
comparou nossa experiência frente ao fenômeno informacional a sentar-nos
diante de uma mesa cheia de peças de quebra-cabeças de diferentes conjuntos,
sobrecarregados e incapazes de montar uma imagem coerente. Esta metáfora
vai além da mera classificação de dados; implica a nossa luta para obter sentido
e significado num mundo hiperconectado.
Mais de quarenta anos depois desta observação de Klapp, a overdose de informações tornou-se exponencial e sufocante. Na atualidade, as maiores empresas do mundo são empresas que formatam e trabalham os seus produtos a partir de comunidades de memórias. Em uma das mais recentes edições do Fórum Econômico, em Davos, foi apresentado um número surpreendente: em 2020, foram criados aproximadamente 44 zetabytes de dados. Para colocar isso em perspectiva, são 40 vezes mais bytes do que estrelas observáveis no universo. Essa entropia informacional ressalta a importância dos locais de memória. Eles permanecem como bastiões de contemplação, em meio à cacofonia, convidando-nos a fazer uma pausa e mergulhar em narrativas e artefatos que exigem nosso envolvimento sensorial parcial ou total.
Como a visão de Klapp do fenômeno informacional permanece relevante, estes locais de memória – sejam eles locais físicos, como os corredores sagrados de um museu ou os espaços com curadoria de um arquivo corporativo – oferecem descanso para o acionamento quase total de nossos sentidos, oferecem a possibilidade da desconexão do ruído informacional. Eles permitem uma concentração em histórias, fatos e sensações que muitas vezes são abafadas pelo zumbido incessante da vida digital. São os bastiões estratégicos onde as organizações, o sujeito, os grupos, as comunidades e as sociedades podem refletir e moldar as suas identidades coletivas, livres da maré implacável do ruído digital.
Assim, no turbilhão da nossa existência digital, os locais de memória servem um propósito duplo. Eles não são apenas guardiões do nosso passado, mas também santuários onde podemos desconectar, refletir e encontrar as peças que se encaixam no quebra-cabeça das nossas identidades individuais e compartilhadas. Esta dualidade é talvez o argumento mais forte para a sua importância estratégica na era contemporânea – uma era onde o ato de recordar se torna um ato radical de desafio contra a descartabilidade temporal do mundo digital. Um grito para que nos revoltemos contra as máquinas do descarte de experiências, de memórias e de narrativas.
À medida que nos movemos pela era digital, somos inundados por um mar de informações que caracterizam nosso cotidiano – tanto na sociedade quanto no ambiente corporativo. Este dilúvio de dados cria uma entropia, um apocalipse informacional, que paradoxalmente reafirma a importância dos “lugares de memória”. Esses espaços percebidos como singulares, no espaço e no tempo, servem como oásis de inspiração, experiências, aprendizados e reflexão, onde, em potencial, nos encontramos com histórias, fatos, imagens, sons, cheiros, texturas, sabores e ritmos que podem ser profundamente relevantes para as nossas existências.
Numa sociedade que frequentemente valoriza a quantidade sobre a qualidade, esses lugares de memória destacam-se como mediadores críticos. Eles nos ajudam a navegar entre o que é bruto e o que é refinado, entre o pesado e o leve, entre sonhos e realidade. Eles são a concretização do “tornar-se comum”, onde produzimos pertencimento e construímos comunidades. São refúgios comunitários onde nos sentimos protegidos, tanto fisicamente quanto espiritualmente.
Lugares de memória permitem que o tempo e os movimentos sejam ritualizados. O tempo ordinário, como enfatizou o antropólogo britânico Victor Turner, se transforma em extraordinário, e o cotidiano profano é religado a valores, a saberes e a tecnologias. Museus, memoriais, centros de memória e referência não apenas contam a jornada de uma instituição ou empresa, mas também exibem almas organizacionais, expressando suas identidades, imagens e confiança.
O historiador Pierre Nora, em seu artigo seminal “Entre Memória e História: A Problemática dos Lugares”, escrito em 1980, sublinha a importância desses lugares de memória na avaliação das jornadas históricas da sociedade, de organizações e de seus protagonistas, em vários sentidos, a partir de inúmeros pontos de vista. Museus institucionais e empresariais são mais do que armazéns de conquistas; eles são as linhas que entrelaçam a história corporativa, a cultura e a contribuição social organizacionais. A partir de uma visão democrática desses espaços, distante da visão que os restringe a dispositivos de propaganda, os lugares de memória podem promover o embate de visões históricas e a exposição pública da diversidade de memórias e histórias. Os lugares de memória alinhados com o espírito de nossa época não são mais espaços para histórias únicas, e se colocam como promotores da diversidade, inspiração para a criação, a inovação e o comprometimento com a excelência.
No contexto empresarial, tomemos como exemplo o Museu da BMW em Munique que vai além da história automobilística. Ele revela a evolução da tecnologia e do design industrial, criando uma ponte entre o passado e o futuro da mobilidade. É um espaço que procura homenagear a inovação e a visão de futuro. Vale também destacar – a partir da admissão de erros e crimes documentados – as iniciativas de reparação histórica e econômica feitas por importantes empresas alemãs, em relação a milhares de trabalhadores escravizados por essas empresas, durante o período do nazismo.
O Museu da Guinness, em Dublin, por sua vez, é uma viagem ao coração da cultura irlandesa. Não é apenas uma retrospectiva da famosa cervejaria; é uma celebração e um embaixador do legado cultural irlandês. É um exemplo de como uma empresa pode se posicionar como guardiã e promotora da cultura.
Em um mundo onde a sobrecarga de informações é a norma, esses lugares de memória servem como âncoras que nos ajudam a encontrar significado e propósito. Eles são necessários para a manutenção de uma sociedade informada e conectada, mas também equilibrada e reflexiva. À medida que a tecnologia avança, devemos não apenas abraçar as inovações que ela traz, mas também preservar os espaços que nos permitem refletir sobre quem somos e para onde estamos indo. Esses lugares de memória são essenciais para essa jornada, ocasionalmente como pontos de luz num mar de bytes, guiando-nos em direção a um futuro informado, mas também inspirado e significativo.
Em um mundo onde a cacofonia digital muitas vezes abafa a singularidade da experiência humana, os museus e outros espaços de memória emergem como oásis de contemplação e compreensão. Esses lugares não são meras estantes para artefatos e narrativas; eles são palcos vivos onde as digitais e os interesses de indivíduos e coletividades são expostos, interpretados, criticados e celebrados ou renegados. No contexto corporativo, museus como o da B3 no Brasil não são apenas relíquias do passado financeiro, mas sim um testemunho vivo das realizações e aspirações daqueles que moldaram e continuam a moldar suas trajetórias.
David Ravassi, professor da Università Bocconi, ao observar museus e centros de memória e referência empresariais na Itália, define-os como altares modernos do culto ao trabalho e à expressão humana. Eles são espaços onde a essência de uma marca não é apenas explicada, mas também ressignificada através da interação com o público. O museu da Alfa Romeo, estrategicamente localizado próximo do centro de design, é um exemplo notável dessa dinâmica. Os designers, envolvidos pela herança histórica de modelos clássicos, encontram ali uma fonte inesgotável de inspiração para a criação de veículos que honram o passado glorioso da marca, enquanto pavimentam o caminho para seu futuro.
Essa fusão de história e inovação é ainda mais evidente no caso da Piaggio e sua emblemática Vespa. A decisão de revitalizar a Vespa, após duas décadas sem mudanças significativas, foi tomada com um respeito reverencial pelo seu legado. Os designers mergulharam nos arquivos do museu, estudando cada curva e linha dos modelos antigos para garantir que a nova Vespa mantivesse os elementos icônicos que transcendem o conceito de uma simples lambreta, consolidando-a como um ícone cultural.
Os museus e centros de memória e referência empresariais, portanto, desempenham um papel crucial na mediação entre a quantidade e a qualidade, o bruto e o suave, o pesado e o leve, o sonhado e o realizado. Eles são espaços onde “tornar-se comum” não é uma expressão de mediocridade, mas sim um processo de construção de identidades compartilhadas e comunidades coesas. Através de suas narrativas e exposições, eles ritualizam o tempo e o movimento, transformando o ordinário em extraordinário e religando o pragmatismo do cotidiano com valores, saberes e tecnologias.
O Museu da Guinness e o Museu da BMW, cada um à sua maneira, exemplificam essa ponte entre as épocas, destacando não apenas as contribuições de uma corporação para a sociedade, mas também celebrando a inovação e a busca contínua pela excelência. Esses espaços se afastaram da simples autocongratulação para se tornarem locais de aprendizado e inspiração, refletindo a jornada de uma instituição de maneira tangível e funcional.
Esses museus são, em última análise, testemunhos tangíveis de que, em uma época de entropia informacional, há um valor crescente na pausa e no silêncio. Eles nos convidaram a desacelerar, a refletir e a encontrar significado na tapeçaria rica e muitas vezes complexa da história corporativa e cultural. Em um mundo acelerado e inundado de dados, os lugares de memória se afirmam como fundamentais para entendermos não apenas de onde viemos, mas para onde, juntos, podemos aspirar a ir.
No tecido do discurso corporativo moderno, termos como “accountability” (responsabilidade) e “compliance” (conformidade) são cada vez mais fios na estratégia de utilizar a memória corporativa de maneira produtiva. A memória institucional e empresarial, forjada principalmente nas dinâmicas econômicas, políticas e culturais, oferece uma lente através da qual acontecimentos como as mudanças no perfil do Estado, reestruturações patrimoniais, inovações tecnológicas e critérios de sustentabilidade ambiental, social e de governança são vistas, examinadas e descobertas.
No contexto empresarial brasileiro, a história e a memória corporativa emergem como campos de estudo imprescindíveis tanto para o mercado quanto para o meio acadêmico. Sob a influência de estudos multidisciplinares, que examinam as empresas através de uma lente comparativa e transversal, observam-se uma valorização crescente da trajetória das organizações. Este movimento se desdobra ao considerar fatores como desenvolvimento de produtos, parcerias estratégicas e reestruturações corporativas, além de desafios econômicos, ambientais, sociais e de governança.
Nesses estudos multidisciplinares estão os ecos teóricos de Alfred Chandler, cujos trabalho seminais “Strategy and structure”, “The visible hand” e “Scale and scope” investigaram a evolução das estruturas organizacionais frente às demandas do crescimento empresarial. Professor emérito da Harvard Business School, Chandler propôs que as estruturas organizacionais se adaptam às estratégias empresariais, uma tese que reverbera até hoje entre os estudiosos da administração.
No Brasil, aprofundando-se nessa direção, encontramos os estudos do professor Cleber Aquino, que nas décadas de 1970 e 1980, centrou sua atenção na narrativa viva da história empresarial. A coleção “História empresarial vivida” de Aquino é uma compilação rica e específica de depoimentos de empresários que, muitas vezes com recursos próprios e familiares, ergueram suas companhias. Esses relatos não apenas desvendam as práticas administrativas e comerciais de uma era anterior, mas também trazem à tona as estratégias de enfrentamento dos desafios da época.
No campo das Interfaces da Comunicação, destacam-se a pesquisa Storytelling: as narrativas da memória na estratégia da comunicação, realizada por Rodrigo Cogo, em 2008; a pesquisa Aberje e Valor Setorial Comunicação Corporativa: narrativas de legitimação do campo profissional, realizada por Victor Henrique Pereira, de 2022 e a pesquisa Narrativas Organizacionais e Impacto: estudo das cartas de Larry Fink aos CEOS, de 2023, realizada por Fábio Toreta.
Tais estudos destacam o valor inestimável da memória empresarial como um ativo estratégico, capaz de fornecer insights para o presente e orientação para o futuro. A abordagem de Aquino, em particular, reforça a noção de que entender a história de uma empresa é essencial para qualquer organização que busque inovar e prosperar em um ambiente de negócios cada vez mais complexo e interconectado. As pesquisas na interface entre a Comunicação e a História e a Memória Empresarial investigam as formas como as empresas e instituições combatem o “desencantamento do mundo” e a “armadura de ferro”, sentimentos radicalizados pela industrialização e pelas linguagens técnicas especializadas. Max Weber pinçou, ainda no contexto da Segunda Revolução Industrial, essas duas expressões da literatura alemã. Não por acaso, os museus são também o abrigo das musas que representam as “velhas artes”, encantadoras do mundo desde os tempos imemoriais.
A memória, contudo, não é apenas uma ferramenta para navegar pelo presente ou planejar o futuro; em nossos dias, ela é um compromisso com a responsabilidade histórica. Neste sentido, os lugares de memória das empresas e instituições são mediadores entre o passado e o presente, âncoras que ajudam a formar comunidades de pertencimento e a estabelecer um senso de continuidade organizacional.
Estes lugares de memória também estão se adaptando às novas realidades impostas pelas mudanças geopolíticas e crises biossanitárias, que alteram as relações internacionais e impõem desafios inéditos. Por exemplo, uma empresa pode exibir suas conquistas tecnológicas em um museu corporativo, mas também pode usar esse espaço para refletir sobre seu papel e impactos na sociedade.
Esses espaços não são estáticos; eles evoluem com as empresas e as comunidades que servem. Esses locais fazem com que o passado não seja apenas preservado, mas também interrogado e ressignificado. Em um momento em que o mundo está cada vez mais voltado para a inovação e o progresso rápido, esses museus e centros de memória oferecem um espaço para a reflexão e para a apreciação da jornada que cada empresa e indústria trilhou.
Além disso, ao cultivar e cuidar de suas memórias e locais, as empresas podem demonstrar uma adesão aos princípios de sustentabilidade e responsabilidade social. Isso não só melhora a sua imagem perante os públicos e a sociedade, mas também reforça a importância do papel que contribui no desenvolvimento social e econômico.
Em suma, os lugares de memória corporativa são mais do que simples exposição de triunfos passados; eles são um diálogo contínuo com o presente e um pacto com o futuro. Por meio deles, as empresas reafirmam seu compromisso com a responsabilidade histórica e com a construção de um legado que é tanto sobre o passado quanto sobre as promessas do amanhã.
*Palestra proferida no Seminário Os Sentidos da Memória. Museus, Empresas e Sociedade: Ensaios para um fazer colaborativo, realizado em 9 de novembro de 2023, na sede da B3 Bolsa do Brasil, em São Paulo. Organizado por ocasião da celebração do primeiro aniversário do MUB3 – Museu da bolsa do Brasil.
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