Think Tank COMUNICAÇÃO EMPRESARIAL · EDIÇÃO 110 · 2023

Da importância de ler obituários

Se zelássemos melhor pelas nossas memórias e pelas das empresas em que atuamos, não nos surpreenderíamos com a morte e o luto em nosso cotidiano

Paulo Nassar

Todo comunicador empresarial deveria ler diariamente obituários, porque cedo ou tarde vai acabar escrevendo um[1]. Em um dia normal e bonito e sem uma rubrica marcada no planejamento, a morte escolhe, do porteiro ao presidente, alguém do chão de fábrica, do C-level ou do nosso cotidiano. Essa experiência humana radical é narrada pela escritora norte-americana Joan Didion (1934–2021) na abertura de seu livro O Ano do Pensamento Mágico, um relato profundo sobre perda e luto: “E a vida muda rapidamente. A vida muda em um instante. Você se senta para jantar, e a vida que você conhecia termina”.

O tempo de um dia pode ser o tempo de anos. Recentemente o The New York Times lançou o livro O Projeto Decamerão: 29 Histórias da Pandemia. Nos relatos, selecionados pelos editores da The New York Times Magazine, temos trechos que descrevem de maneira ficcional o momento em que a morte surpreende os viventes. Nesse livro, os editores resgatam a expressão latina Memento mori – “Lembre-se de que é preciso morrer” – como uma mensagem valiosa em tempos em que as nossas vidas fluem normalmente. Se zelássemos melhor pelas nossas memórias e pelas das empresas em que atuamos, não nos surpreenderíamos com a morte e o luto em nosso cotidiano. A morte pensada de forma abrangente. Morte de processos produtivos, de produtos, de marcas, de empresas, de colegas.

A literatura como arte nos coloca em um espaço e um tempo singulares de leitura privada ou coletiva, ritual propício para que conversemos sobre questões que nos assustam e das quais fugimos. Sempre acreditei nesse atributo da literatura como uma poderosa máquina de pensar, por isso selecionei aqui pequenos trechos que estão em A Morte de Ivan Ilitch, escrita em 1886 por Leon Tolstoi (1828–1910), com o objetivo de iniciarmos uma brevíssima conversa sobre as relações entre a morte e a comunicação empresarial, pensando em uma lente focada na crítica comportamental embutida no texto de Tolstoi.

Em sua novela, a notícia do falecimento de Ivan Ilitch interrompe de súbito as conversas de juristas, seus colegas de trabalho, sobre um caso em julgamento. Uma pequena nota de falecimento é a força que vai revelar uma antropologia da morte. “É com profundo pesar que Praskovya Fiodorovna participa a amigos e parentes a passagem de seu estimado esposo, Ivan Ilitch Golovin, membro da Corte Suprema, que deixou esta vida no dia 4 de fevereiro do ano da graça de 1882. O enterro acontecerá na sexta-feira, à 1 hora da tarde.”

Notícia breve e sucinta, como deve ser, cria o movimento do grupo de juristas em direção à casa de Ilitch, onde Tolstoi cria um genius loci, que é construído sobre o que ritualizar, o que falar e o que não dizer, o que simbolizar, o que abrir e o que fechar diante de um morto e da morte. A perda também abre muitas narrativas oficiais que têm como fonte instituições – a família, a comunidade, o Estado, a Igreja; a empresa e as relações de produção. Sagrado e profano. Matéria e espírito. Memória e esquecimento. É o motor da vida organizando e desorganizando, a partir de sujeitos, verbos e adjetivos, o que deve ser esquecido e o que deve ser lembrado da trajetória de vida do morto, de Ilitch.

Na construção das identidades de seus personagens, com o objetivo de destacar afetividades, mostrar hipocrisias, egoísmos, contradições e o que é escondido no âmbito das relações humanas, Tolstoi nos conta que em seu ambiente de trabalho Ilitch era muito querido e ainda que seu destino fosse anunciado por uma doença incurável, a morte mexia com “os assim chamados amigos”, e eles “lembravam que agora teriam de cumprir todos aqueles cansativos rituais que exigiam as normas de bom comportamento, assistindo ao funeral e fazendo uma visita de condolências para a viúva”.

Durante o velório, a sacralidade imposta pelo cheiro de velas queimando ao redor do morto não impedia que os colegas fizessem “elocubrações sobre possíveis transferências e mudanças no departamento”, a mudança em dinheiro que uma promoção produz em um salário. O sofrimento, a dor da perda, os “suspiros, incenso, lágrimas e soluços” não impediam os viventes de dar atenção aos assuntos práticos, como o preço da cova do defunto Ilitch, o cheiro de cadáver e de desinfetante presentes na sala do velório e, mais, a passagem do tempo empurrando os presentes para outros compromissos da vida em curso.

A novela de Tolstoi – a vida prática, o desafio de construir uma carreira, quando o morto ainda não esfriou – traz um exemplo do “desencantamento do mundo”, metáfora com que Max Weber descreveu o ambiente do industrialismo crescente da segunda metade do século 19. Esse desencantamento das relações humanas e de trabalho está em grande forma no nosso presente. As mortes acontecem em nosso cotidiano de trabalho, e a comunicação empresarial trata de se livrar delas de forma rápida. Obituários pobres que apenas narram o lead não contam o extraordinário da vida de pessoas, independentemente de seu poder e de seu lugar na hierarquia. Sugiro que os comunicadores empresariais ensaiem escrever sobre a morte e o luto em outros gêneros jornalísticos e literários. Tolstoi é sempre uma boa inspiração.

Paulo Nassar é diretor-presidente da Aberje, professor titular da ECA-USP e coordenador do Grupo de Estudos de Novas Narrativas (USP)

 
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