A comunicação e a síndrome do muro
É urgente redescobrirmos a sabedoria da filosofia e reforçarmos que o espaço para o contraditório é alicerce da evolução do processo civilizatório
Em 415 a.C., durante a Guerra do Peloponeso, um pouco antes da partida para a Sicília de parte do contingente ateniense guiado por Nícias e Alcibíades, emergiu a misteriosa mutilação das “ermas”, tradicionais bustos ou esculturas de cabeças feitas de pedra, colocadas nos cruzamentos das estradas da época. Esse ato de vandalismo e de ataque a um símbolo cultural, um verdadeiro sacrilégio para os atenienses, foi imediatamente interpretado como um presságio fatal para o êxito da expedição de Atenas na Sicília. Basta esse episódio para nos dizer que os símbolos estão entre os mais tradicionais garantidores do poder político vigente, e isso vale para todo o curso da história, da Antiguidade até os dias de hoje.
Avançando no tempo, a Finlândia, segundo o World Happiness Report, é atualmente o país mais feliz do mundo. Não sabemos se essa posição invejável resistirá às novas tensões geopolíticas, porém outro dado chama atenção: sua taxa de suicídios é três vezes maior que a de países que não se encontram nem entre os 20 primeiros nesse ranking.
O que está acontecendo nas entranhas mais profundas da nossa sociedade atual? Estamos enfrentando uma implosão dos desejos. Essa é a resposta encontrada em Supersocietà: Ha Ancora Senso Scommettere Sulla Libertà? (Supersociedade: Ainda Faz Sentido Apostar na Liberdade?), último livro dos sociólogos italianos Mauro Magatti e Chiara Giaccardi. Estimulamos demais os desejos (em detrimento dos deveres). E agora constatamos o emergir de uma “pulsão securitária”, que neste artigo chamarei de Síndrome do Muro em alusão ao termo usado por Ferruccio de Bortoli, ex-diretor do Il Sole 24 Ore, o principal jornal de economia e negócios da Itália.
Prazer e pulsão de morte são duas faces da mesma moeda, já nos advertia Sigmund Freud. O impulso para abrir-se aos outros – acelerado pela globalização e pela digitalização – se transformou em seu exato contrário: o fechamento em si mesmo. Agora parte da sociedade busca refúgio em universos paralelos ou em bolhas compostas por semelhantes, em que o poder tende a sofrer um processo totalitário, de exclusividade, frio, distante e muitas vezes agressivo contra quem ousar pensar ao contrário.
As elites se desancoram das comunidades locais, e o poder do diálogo e da construção social baseada em visões contraditórias, como a filosofia ensina, se empobrece. Dispomos de uma infinidade de dados, mas não conseguimos nos agarrar na cadeia e no poder das interrelações. Nós, assim, tão frágeis nas relações sociais, seremos capazes de curar as fragilidades do planeta?
Exemplos recentes no Brasil e no mundo não faltam para fundamentar tal linha de pensamento. O antes país orgulhoso de seu futebol e de sua amarelinha foi capaz de gerar a insana tentativa de cancelamento de um ataque dos sonhos composto por Pelé, Romário, Rivaldo, Ronaldinho e Neymar, ícones da construção do penta e de um possível hexa, por mera orientação política. Mais do que isso, até a Puma sofreu pressão para se posicionar sobre o que deveria ser um simples ato de liberdade de opinião de Neymar, principal talento individual da seleção brasileira, além de fenômeno de audiência em redes sociais.
O desafio da comunicação é sobretudo cultural e exige uma quebra de paradigma, pois o mundo sustentável não é fundado no aumento das possibilidades individuais. São urgentemente necessários um freio nos desejos individuais e a aceleração da construção de atos e símbolos que reforcem o espaço para o contraditório, para que sirvam de pontes respeitosas para visões de mundo tão diferentes. É urgente redescobrirmos a sabedoria da filosofia e reforçarmos até mesmo conceitos que deveriam ser simples e que parecem perdidos, de que comunicação é ciência social, e que mesmo no campo das ciências exatas o espaço para o contraditório é alicerce da evolução do processo civilizatório.
A digitalização mudou a natureza do poder e o controle de nossas vidas em profundidade, além de enfraquecer a nossa capacidade de discernimento. Parece muito mais importante que CPFs e CNPJs resistam à tentação de querer tomar posição sobre quaisquer temas sociais, com ilusões criadas por nossos vieses individuais e nossas bolhas de semelhantes, e que insistamos na sabedoria filosófica que apoia o respeito à dignidade de todas as pessoas e o espaço para o contraditório, como cura para a síndrome do muro que nos afasta como sociedade.
A convicção de que estamos criando uma sociedade melhor, aplaudida somente dentro de bolhas de semelhantes, e uma posição intolerante contra quem vê o mundo por um prisma completamente diferente, pode ser na verdade somente uma luta superficial e infantil contra “moinhos de vento”, em uma versão de Dom Quixote do século 21.
A cadeira moderna da comunicação corporativa parece exigir modelos mentais como o de Ferdinand Ebner, que valorizam a comunhão do “eu” com o “tu”, especialmente do “tu” que é tão diferente do “eu”. Precisaremos então reaprender a ser um pouco comunicadores, filósofos e construtores de pontes, não necessariamente nessa ordem. Faltará então descobrirmos e decidirmos juntos qual será a nossa nova “erma”.
Giuliano Michel Fernandes é mestre em Business Ethics e head global de Marketing e Comunicação da CBMM