Informar bem para inovar
A concepção de novas ideias em uma empresa passa pela comunicação descomplicada e principalmente pela qualidade da análise dos dados, considerada o novo combustível para as mudanças
A sentença “Os dados são o novo petróleo” foi proclamada pelo cientista de dados britânico Clive Humby em 2006, e desde então se tornou uma espécie de mantra. Contudo, é importante lembrar que Humby não é um guru místico tentando levar os executivos ao nirvana, mas um matemático cujo enunciado seguia o raciocínio lógico. Para quem não conhece, ou esqueceu, eis a proposição completa (em tradução livre): “Os dados são o novo petróleo. São valiosos, mas, se não forem refinados, não podem realmente ser usados. Tẽm que ser transformados em gás, plástico, produtos químicos etc. para criar uma entidade valiosa que impulsiona a atividade lucrativa; da mesma forma, os dados devem ser divididos, analisados para que tenham valor”.
Ou seja, se informação é poder, sem a interpretação – o “refinamento” – os dados são apenas material bruto sem utilidade. A tendência da gestão baseada em dados depende de uma contextualização das informações e de sua transformação em conhecimento. Cientes disso, muitas empresas têm investido na – e se beneficiado com a – gestão de dados. Maior imobiliária digital da América Latina, o QuintoAndar é uma startup fundada há nove anos cuja inteligência de dados está no “coração das relações públicas”, segundo o diretor de Comunicação Bruno Rossini. “É um time multidisciplinar com economistas, jornalistas e especialistas em mineração de dados que procuram, dentro do nosso pool de dados, padrões de comportamento e histórias que vão nos ajudar a criar a reputação da marca”, explica.
Como é comum em uma startup com forte componente de tecnologia, os dados orientam a gestão da empresa, e inclusive há uma equipe de engenheiros de dados. Pesquisas contratadas pela Comunicação são utilizadas frequentemente por outras áreas, como Desenvolvimento de Produto. Um exemplo é o Censo QuintoAndar de Moradia, um grande estudo da situação e dos desejos dos brasileiros sobre morar. Realizado em parceria com o Datafolha, o censo tem por objetivo gerar pautas para aumentar as citações do QuintoAndar na imprensa e assim ir construindo sua reputação.
Rossini destaca a experiência do time em contar histórias a partir de dados, correlacionando urbanismo e informações macroeconômicas. “A nossa plataforma de comunicação, seja no trabalho de relações públicas, assessoria de imprensa ou marca, é voltada para um storytelling que nasce de um dado ou tem ele em seu centro. Uma informação sobre moradia que faz com que as pessoas se relacionem com aquilo”, afirma. A descoberta de que 83% das pessoas que buscam casas para comprar ou alugar querem um quintal foi destacada em uma campanha publicitária estrelada pelo sambista Martinho da Vila, que relatava como o pagode surgiu no quintal das casas na Zona Norte da capital do Rio de Janeiro.
A pesquisa aprofundada foi realizada para descobrir histórias para a comunicação, mas também inspirou melhorias realizadas pelo time de desenvolvimento de produto: a criação dos filtros “quintal”, “varanda” e “jardim”. “Lançamos em 2022 cerca de 15 filtros diferentes”, conta Rossini, ressaltando que, embora esse papel de inovação esteja com outras equipes, é natural que surjam ideias de melhorias a partir do trabalho do time de comunicação.
De olho nas redes sociais
No caso do QuintoAndar, toda a governança de comunicação e o apoio técnico são realizados internamente, mas em outras grandes empresas é comum buscar fornecedores. Pioneira em inteligência de dados para comunicação estratégica e reputação, a Cortex tem uma plataforma de software as a service (SaaS), assinatura de serviço de análise de big data que atende às áreas de vendas, marketing e comunicação. A inteligência de dados tem sido o combustível que impulsiona muitas empresas a ajustar suas rotas e evitar prejuízos. Um exemplo: ao monitorar o lançamento de uma montadora de automóveis, a plataforma identificou reclamações dos clientes sobre o câmbio e o motor do novo modelo, e tal informação serviu de insumo para a área de produto.
A plataforma da Cortex não é somente uma ferramenta de social listening que acompanha as conversas dos consumidores na internet. Ela também monitora um grupo de 9 mil formadores de opinião com forte influência sobre o público, como a cantora Anitta e o youtuber Felipe Neto, ambos com dezenas de milhões de seguidores. A plataforma da Cortex acompanha ainda públicos específicos, conforme a necessidade do cliente. “A curadoria é importante para o relacionamento de comunicação institucional. Tão importante quanto o que a pessoa fala é quem é essa pessoa, qual é o papel que ela cumpre na estratégia institucional”, pontua Otávio Ventura, líder de ofertas da Cortex.
A inteligência de dados tem sido o combustível que impulsiona muitas empresas a ajustar suas rotas e evitar prejuízos
A partir de uma análise dos dados com focos específicos é possível acompanhar tendências de comportamento e temas comentados nas bolhas de informação, o que ajuda a verificar a efetividade de estratégias de comunicação e atualizá-las, assim como prevenir crises e fazer uma melhor gestão financeira de patrocínios. “As bolhas são como as pessoas consomem informação. Estamos num momento de polarização no mundo, então o mesmo fato tem interpretações diferentes, dependendo da bolha em que a pessoa está, como se informa, a quem acompanha e dá credibilidade”, contextualiza Ventura.
A importância da análise de dados e como ela ajuda a impedir desastres pode ser ilustrada por um episódio: ao monitorar o teor das mensagens-chave de um podcast e as conversas que sua audiência gerava, a Cortex orientou um cliente a retirar o patrocínio do programa. Quatro meses depois, o comentário de um dos apresentadores gerou uma crise de imagem no podcast. A reputação do cliente, porém, saiu intacta do episódio.
A outra vertente da plataforma ajuda a acompanhar as tendências, algo fundamental para uma empresa que deseja ser percebida como inovadora. Na pandemia, a Cortex conseguiu captar o momento exato em que a pauta de economia ganhou mais relevância em comparação com a pauta de saúde e segurança sanitária. Assim, a empresa orientou os clientes que, para se manter em evidência, não adiantava mais falar sobre doações, mas sim sobre empregos e se haveria um programa de apoio para quem eventualmente fosse demitido.
Antecipando tendências
A gestão de dados também serve para antecipar tendências. Nos últimos dois anos, o crescimento acentuado da pauta ESG fez com que as corporações investissem no tema e na comunicação sobre ele. Especializada em desenvolvimento de softwares para gerenciamento de processos de negócios e fluxo de informações entre as organizações, a SAP já estava atenta a essa tendência em 2019, quando percebeu uma crescente curiosidade de seus clientes sobre o assunto. Naquele ano, a diretora de Comunicação Luciana Coen, também responsável pela área de Responsabilidade Corporativa, foi escalada para coordenar um comitê de ESG. “Temos um modelo de gestão descentralizada, então um dos critérios foi de que ninguém melhor do que a pessoa de comunicação, que sabe tudo que está acontecendo na empresa, para mapear e reunir todas as práticas de ESG da companhia”, conta Luciana.
Formado por funcionários de diferentes áreas, o comitê passou a se reunir uma vez por mês para trocar informações e experiências. O objetivo era identificar iniciativas já existentes que pudessem posicionar a empresa como exemplo para outras companhias. Em conjunto com o comitê, uma consultoria de sustentabilidade contratada identificou 23 soluções da SAP relacionadas a ESG. Uma delas visava a estimular a inclusão de fornecedores locais para aumentar a diversidade na cadeia de valor de grandes empresas. Outra, um projeto de redução no volume de viagens para reuniões, compensando as emissões de gases de efeito estufa geradas nesses deslocamentos, se tornou uma nova política da companhia. Bem como a expansão de uma iniciativa para que os data centers utilizem fontes renováveis de energia elétrica.
Inicialmente com oito pessoas, o comitê hoje tem o dobro de integrantes, tamanha a relevância que ganhou. Há funcionários das áreas de compras e gestão de fornecedores, facilities (ou de infraestrutura), vendas, marketing, sustentabilidade, recursos humanos, responsabilidade corporativa, comunicação. Colocar essas pessoas juntas para trocar experiências e se comunicar sobre iniciativas de sustentabilidade ajudou também a trazer ideias de melhorias que impactam no bem-estar dos funcionários e na imagem da empresa como uma marca inovadora. Por exemplo, com a instalação de um totem de guarda-chuvas de aluguel.
Para aprofundar seus conhecimentos, Luciana realizou diversas especializações em ESG, e sua nova atribuição também resultou na realização de tarefas diferentes por seu time. “Fizemos algo que eu nunca havia imaginado que faríamos, que foi criar treinamentos de vendas sobre ESG”, conta a executiva. Ao perceber a necessidade, por parte de perguntas dos clientes, a empresa passou a fazer um relatório local de sustentabilidade mais detalhado, cujos dados foram incorporados pela matriz no relatório global, e depois virou exemplo para outras subsidiárias, como México, Chile e Argentina.
Novos canais de comunicação interna
Integrar os dados e informações das diferentes áreas da empresa ou de uma grande divisão da companhia pode gerar inovações não só em produtos e serviços para os consumidores, mas também para os funcionários. Inovar na governança da comunicação interna da divisão de operações da montadora Volvo e lançar novos canais de contato com os funcionários e formatos de conteúdo renderam uma promoção para Emerson Sanders. Em novembro de 2022, ele se mudou para a Suécia para trabalhar na sede global da Volvo. Antes coordenava a comunicação interna do GTO, Group Truck Operations – área responsável pela produção de motores e cabines e pela montagem de caminhões e ônibus da marca em Curitiba (PR), que tem cerca de 2.300 funcionários de um total de cerca de 4 mil no Brasil. Até 2018, cada departamento dessa área tinha uma pessoa responsável por comunicação que respondia diretamente para um líder de negócios que não era especialista em comunicação.
Integrar os dados e informações das diferentes áreas da empresa pode gerar inovações também para os funcionários
A governança descentralizada da comunicação na época acabava gerando ruídos, e era comum clientes comentarem que pareciam empresas diferentes. O departamento de Emerson vinha se destacando nos resultados, e ele foi escalado para montar uma equipe que reunisse cada responsável pela comunicação. Assim, foi possível juntar esforços para em 2019 lançar um perfil no Instagram específico para se comunicar com os funcionários da divisão e contribuir no engajamento. Com histórias sobre colaboradores e a cultura corporativa, o novo canal também se tornou uma importante vitrine da marca empregadora, atraindo mais de 10 mil seguidores – quase quatro vezes mais do que o número de funcionários da divisão e mais que o dobro de funcionários da Volvo no Brasil.
A equipe também criou o Whats Volvo, no aplicativo de mensageria da Meta, e 91% dos funcionários optaram por participar da lista de transmissão para receber avisos, como da campanha de vacinação contra a gripe, e contribuem com a melhoria de processos de comunicação respondendo a pesquisas. “É uma estratégia alinhada com a global, a ‘bring your own device’, que tem como objetivo que cada funcionário traga seu próprio celular e o use com os sistemas da Volvo no trabalho para sermos uma empresa mais digital”, diz Sanders. Embora hoje, pós-pandemia, utilizar o Instagram como canal de comunicação com os funcionários tenha se tornado algo comum, inovações como essas podem sofrer resistência. Conforme conta o coordenador, alguns diretores “torceram o nariz na época porque estávamos indo para um caminho ‘desconhecido’”.
A decisão pela escolha dos novos canais veio a partir de uma pesquisa interna que considerou outras redes sociais. “As pessoas do administrativo conseguimos impactar rapidamente, por exemplo, com um e-mail. Já com as pessoas da fábrica, a comunicação geralmente é feita em reuniões periódicas face a face na própria linha de produção, mas queríamos que as mensagens-chave chegassem ao celular delas”, lembra Sanders. A opção de cada funcionário participar ou não do grupo de WhatsApp deu segurança jurídica para executar a iniciativa, e o próximo passo da estratégia de comunicação interna é medir a reputação da área entre os funcionários.
Aline Scherer é comunicóloga e jornalista formada pela PUCRS, com experiência em cobertura de negócios, carreira, sustentabilidade e inovação. Estuda neurociência cognitiva aplicada ao consumo, espaços e design. Trabalhou durante cinco anos na revista Exame e integrou as redações da CNN Brasil, em São Paulo, da TV Pampa, em Porto Alegre, e a digital do Grupo RBS.